Abandonos e Encontros Afetivos

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

Abandonos e Encontros Afetivos

ADOÇÃO

“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Empresto as palavras do poeta, Vinicius de Moraes, para sintetizar o encontro criado pela paternidade e maternidade afetivas que é a representação máxima do amor. Amor traduzido no colocar-se disponível para acolher outro ser humano, cuidá-lo, educá-lo, ampará-lo, ajudando-o a transformar-se em uma pessoa de bem. 

Este encontro afetivo vai muito além da genética, pois se somente a concepção biológica definisse a paternidade/maternidade, não estaríamos tristemente nos deparando com o que podemos chamar de “sociedade dos filhos órfãos”. Ou seja, uma geração de crianças e adolescentes que estão sendo atendidas em suas necessidades materiais, mas que vivem em uma profunda orfandade afetiva. 

São os filhos emocionalmente negligenciados, cuja educação fica muitas vezes entregue a terceiros, como babás, escolas, creches ou, ainda, por especialistas de diversas áreas que cuidam da infância e que podem ajudar os órfãos emocionais a diminuir o impacto da ferida causada pela ausência dos cuidados e do afeto de seus pais.

Para além da orfandade apenas afetiva, nos deteremos mais especificamente nas crianças e adolescentes efetivamente abandonadas, desamparadas à nível material e familiar e que acabam sendo resgatadas pelos órgãos governamentais. Estamos falando das crianças e adolescentes que residem nos abrigos e lares provisórios, à espera de pais que realmente os adotem, incorporando-os em suas vidas como filhos nascidos do amor.  

Desta forma, chegamos a proposta do presente capítulo, de refletir sobre a Adoção a partir da perspectiva psicológica. Para tanto, novamente podemos parafrasear uma poética ideia, agora de um importante especialista na área, Luiz Schettini. O autor define que “adotar é transformar algo puramente biológico em um ato profundamente afetivo”. Embalados nesta delicada proposta, podemos deduzir que todos os filhos, biológicos ou não, precisam ser afetivamente adotados, acolhidos pela disponibilidade emocional de pais, verdadeiramente dispostos a transformar aquela criança em seu filho(a). 

A paternidade/maternidade pode ser alcançada por dois caminhos: o caminho da biologia e o da adoção. Ambos podem ser gratificantes e possuem suas trajetórias e orientações próprias.  No caso da adoção, trata-se de caminhos diferentes para a filiação, apenas não traçados pela biologia. Ela não torna os filhos adotivos mais difíceis ou desafiadores, pois esse é um mito que deve ser superado, para não criar um movimento de discriminação capaz de novamente abandonar e/ou culpar nossas crianças e adolescentes por sua própria orfandade. 

Escolher o caminho da adoção é abrir-se para acolher distintos olhares, ou seja, é nos tornarmos empáticos para compreender os sentimentos das diferentes pessoas envolvidas na trajetória que culminou com a filiação adotiva. São olhares que nos permitem acolher os pais que se desencontraram de seus filhos, o olhar das crianças que perdem estes mesmos pais e, finalmente, o olhar dos pais que recebem e incorporam os filhos de todos estes desencontros anteriores. 

Adotar é também empatizar com o sofrimento dos pais que perderam seus filhos, seja por doenças mentais, negligência, abusos, dificuldades econômicas ou por qualquer outro percalço que os impediram de criá-los e que guardam a dor, consciente ou não, de ver suas famílias se perderem. Também temos a ansiedade dos pais que anseiam por se tornarem guardiões das crianças e adolescentes vítimas destas famílias desfeitas. Nesta dinâmica da adoção, portanto, existem pais e filhos que perdem uns aos outros e pais e filhos que se conhecem, construindo encontros genuínos de acolhimento e amor.

A adoção vai muito além de perdas, nascendo do desejo de alguns adultos de incorporarem à sua vida outras pessoas não nascidas de sua biologia, mas geradas no afeto. Desta forma, a adoção precisa mobilizar e lidar com profundos sentimentos humanos e um longo processo de conscientização precisa ser percorrido, começando pela compreensão de como o desejo de se tornarem pais adotivos foi ou está sendo desenvolvido. 

Caso esse caminho tenha sido escolhido por uma impossibilidade biológica de um ou de ambos os parceiros, será preciso que o luto pelo filho biológico seja elaborado. Trata-se de uma dor que precisa ser acolhida e ressignificada, para que a concepção afetiva de um novo filho seja possível. Outras motivações inconscientes também podem estar presentes e, caso não sejam percebidas ou trabalhadas, ficam subjacentes, oferecendo riscos a uma aceitação plena do filho adotivo. Questões inconscientes como carência afetiva, necessidade de companhia, medo da solidão, necessidade de preencher um vazio familiar, de atender a pressão social ou qualquer outra questão psicológica que precisa ser analisada e transformada.

Em resumo, o desejo de adotar uma criança ou adolescente deve ser protegido de qualquer motivação que venha a comprometer a aceitação da unicidade do filho como “pessoa”. Ou seja, que comprometa de antemão a liberdade da “pessoa” adotada de ser protagonista de sua própria vida, protegendo-a de estar fadada a tornar-se coadjuvante ou figurante da vida de pais emocionalmente confusos.

É claro que as motivações inconscientes que nos levam a ter filhos deveriam ser analisadas por todos aqueles que almejam trilhar o caminho da paternidade/maternidade, uma vez que ambos os caminhos precisam ser construídos. O caminho da adoção, por ser o outro caminho, necessita de alguns fundamentos específicos, que possibilitem garantir que a nova família seja construída em alicerces mais consistentes. 

Um dos fundamentos bastante específicos da adoção trata dos aspectos legais, uma vez que, segundo especialistas, a adoção deve ser realizada dentro dos trâmites legais e assessorada pelas equipes de apoio socioemocionais, idealmente disponíveis e habilitadas para orientar o processo de adaptação da nova dinâmica familiar, disponibilizando grupos de apoio para acompanhamento pré e pós adoção. 

No período que precede a adoção, juntamente com as motivações que levaram a este caminho, precisam ser analisadas as expectativas que se têm sobre a criança ou adolescente a ser adotado. Expectativas muitas vezes perigosas, que podem criar um modelo de filho(a) inalcançável, as quais irão gerar uma série de frustrações, tanto nos pais que não encontram o filho sonhado, como nos filhos que novamente se sentem inadequados, invalidados e emocionalmente abandonados.

O psicólogo Luiz Schettni Filho coloca as expectativas frustradas no que convencionou chamar de “dores da adoção”, acrescentando outra série de sofrimentos que a adoção mal orientada pode acarretar e que devem ser muito bem trabalhadas para garantir que a adoção seja bem sucedida. Falar das possíveis dores que acompanham o caminho da adoção tem a intenção de evitar que um ato de tanta responsabilidade e compromisso seja colocado em risco ao ser romantizado com fantasias de encontros entre pais e filhos “perfeitos”, com crianças idealizadas e que se adaptam como por encanto aos sonhos de seus pais adotivos. 

A experiência clínica, acompanhando muitas adoções sustentadas apenas na imponderabilidade dos sonhos, nos mostra uma série de novos desencontros familiares, nos quais crianças e adolescentes feridos são novamente expostos ao desamparo afetivo e novamente feridos. Infelizmente os processos de adoção (des)preparados neste romance da família perfeita, são responsáveis pela maioria das adoções mal sucedidas que, no seu extremo, levam a ruptura e a dramática “devolução” de crianças à abrigos e ao desamparo. Em suma, falar sobre os desafios da adoção é como preparar um antídoto para prevenir futuros desencantos e desencontros que podem trazer muito mais sofrimento em histórias já tão comprometidas com o desamor.

Um dos primeiros desafios a serem confrontados está na aceitação de que o filho adotivo é, antes de tudo, uma “pessoa” que traz uma história, com vivências, geralmente sofridas e que muitas vezes a bloqueia de aceitar de imediato o amor oferecido pela nova família. As memórias que vem do útero, das famílias que fracassaram em protegê-las, dos abrigos e/ou dos lares substitutos, deixam saudades, melancolias e medos que devem ser acolhidos e compreendidos. 

Faz-se necessário enfatizar que histórias emocionais são tecidas a partir de cheiros, toques, sabores, sons e imagens que ficam submersas no inconsciente da criança e que podem ser despertadas a qualquer momento, por estímulos que pertencem a um passado por vezes muito distante. Essa intrincada e delicada trama entre passado e presente foi retratada com extrema delicadeza no filme “Lion, uma Jornada para casa”. O filme é inquietante e nos faz refletir sobre o quanto as vivências da primeira infância nos são significativas, capazes de nos impulsionar ou de nos aprisionar em buscas pungentes para preencher vazios, dúvidas e dores que persistem na Alma, não importando o distanciamento que tenhamos tentado estabelecer. A criança adotiva tem o direito de incorporar sua história de vida passada às páginas novas que está escrevendo com seus novos pais.

Compreensivelmente, para os pais adotivos fica difícil a aceitação de que a história que irão escrever com seus filhos(as) já tenha começado em outro tempo, com outras pessoas, mas certo é que sempre novos capítulos podem ser escritos a partir do amor. A esperança na superação dos desencontros anteriores deve estar presente em cada nova página escrita.

 Conforme dito anteriormente, a história das crianças e adolescentes não pode ser negligenciada ou esquecida, mas deve ser contada a elas com delicadeza, preservando-as do relato de detalhes desditosos, buscando amenizar seu abandono com a explicação de que seus pais biológicos, por alguma razão, não foram capazes de cuidá-las. Enfatizar o valor destes pais biológicos, enquanto gerados da vida, explicando que foi graças a eles que ela nasceu e que o feliz encontro entre ela e seus pais adotivos foi possível. A parte da história que as crianças realmente precisam conhecer desde muito pequenas é a de que não vieram da barriga de sua mãe, mas que outra mãe ou mulher as gerou. Elas não precisam saber sobre as razões que as tornaram órfãs, apenas entender que são amadas como filhas pelos seus pais adotivos.

O abandono anterior gerou uma nova família que com amor paciente e o acolhimento incansável, é capaz de transformar o que um dia foi desamparo em segurança, possibilitando que as crianças e adolescentes superem os bloqueios que trazem consigo. 

Bloqueios que se fazem presentes no cotidiano, expressos em comportamentos muitas vezes desafiadores, em atitudes provocativas ou rebeldes que, na maioria das vezes, não passam de tentativas para provar a si mesmas que sua nova família as aceitará como filhos(as) legítimos(as) e que não correm mais o risco de serem abandonadas. Na contraposição, por este mesmo medo de rejeição, as crianças podem abrir mão de si mesmas, buscando adaptar-se as expectativas ou a modelos que acreditam ser o que seus pais adotivos esperam. Ou seja, as crianças, principalmente as que já compreendem sua situação de vulnerabilidade, ficam confusas e assustadas dentro de um anseio tão intenso de aceitação que acabam apresentando comportamentos inadequados, de rebeldia ou perfeição, que as afastam de sua verdadeira essência. Lembrando que, para a criança,  o papel de filho(a) é algo novo, e que deve ser aprendido, caso contrário, ela terá sempre a sensação de inadequação e de incapacidade para pertencer a uma família, reforçando, ainda mais, o sentimento de culpa que já carregam consigo por qualquer insucesso que ocorra em suas vidas.

Logo, nesta construção cotidiana do afeto, os pais adotivos também acabam um pouco confusos e cansados, descobrindo em si mesmos, sentimentos muitas vezes desconhecidos, como irritação, exaustão, impaciência, medo, frustração, decepções e outras emoções até então nunca ou pouco sentidas. 

Visando minimizar estas possíveis dificuldades que podem surgir no caminho da adoção, existem orientações cotidianas que podem facilitar a construção da nova história familiar e, para tanto, os grupos de apoio de pré e pós adoção, conforme dito anteriormente, além de um compromisso legal, efetivamente podem oferecer valioso amparo. Conversar com outras pessoas que estão ou já viveram experiências parecidas pode oferecer ajuda para que as dificuldades sejam pensadas em conjunto e um leque muito amplo de possibilidades de intervenções seja encontrado.

A chegada da criança e do adolescente na nova residência requer uma adaptação paulatina, pois é sempre preciso lembrar que o filho está entrando pela primeira vez na casa, com pessoas com as quais pouco conviveu, e que trazem rotinas totalmente diferentes das quais até então estavam acostumados. Seria algo como se nós estivéssemos tendo que conviver em um ambiente estranho, com pessoas com as quais pouco interagimos e que esperam de nós uma abertura emocional que, até então, somente trouxe decepção e desamparo.

Para ajudar ainda neste acolhimento, os especialistas recomendam que a nova família tente se adaptar a criança, através de uma investigação detalhada de seus gostos e costumes, procurando oferecer refeições e rotinas similares as quais a criança estava acostumada e, aos poucos, passar a oferecer novos modelos. Esta preservação de suas preferências demonstram respeito, oferecem segurança e reduzem a ansiedade da criança.

Outra fonte de ansiedade dos pais está ligada ao desempenho escolar, ou seja, ao anseio que podem apresentar de que seus filhos superem suas defasagens educacionais, colocando-os em colégios que, ao invés de facilitar sua adaptação, acabam trazendo exigências que os amedrontam e que podem intensificar seu sentimento de menos valia e inadequação. Em alguns casos, é mais recomendável colocá-las em uma escola menor e mais parecida com a escola anterior que lhe serve de referência. Lembrando que a ênfase deve estar no acolhimento afetivo e que pressões pedagógicas devem ser evitadas. 

Assim sendo, a adaptação é um processo e, como tal, exige tempo e paciência. Quando a inserção da criança no núcleo familiar é realizada com sabedoria, aumentam significativamente as chances de que as recompensas afetivas, que a vivência parental propicia, sejam alcançadas. Para que os encontros humanos na família em formação se tornem gratificantes, é necessário refletir sobre todas as variáveis que possam vir a interferir neste caminho. Por esta razão, faz-se absolutamente necessário enfatizar que o fato de levantar possíveis dores não tem o intuito de desestimular a adoção, mas, ao contrário, de torná-la mais construtiva para todos os envolvidos. Tomar consciência de todas as facetas que compõem o processo da adoção, possibilita que frustrações sejam evitadas e que famílias mais saudáveis sejam constituídas. 

A beleza da adoção, quando conscientemente conduzida, está no desdobramento do amor, uma vez que cada camada de dor que é acessada, libera um imenso potencial de afeto que estava soterrado no coração do filho, outrora abandonado. O paciente exercício da amorosidade, portanto, é capaz de curar as feridas do abandono, ressignificando e transformando dores em encontros genuínos, ao tecer vínculos que vão muito além da genética. 

Falar de adoção é falar do amor em um dos seus maiores atos de entrega, pois a construção da paternidade adotiva é um caminho que passa por incontáveis momentos de esperas, seja em preenchimento de formulários, entrevistas e processos de avaliação, até chegar na aprovação de um cadastro que, por sua vez, colocará os futuros pais naquela tão almejada lista de espera, juntando-se aos outros tantos pais que já estão a esperar. A adoção, portanto, é gerada em tantas estações de espera que poderíamos concebê-la como um renovado ato de esperança.  

A confiança consciente no amor pode promover a consistência afetiva necessária para toda construção da paternidade/maternidade, seja qual for o caminho escolhido.  Somente a adoção afetiva genuína dos filhos por seus pais, será capaz de resgatar a sociedade de sua própria orfandade e ajudá-la a construir um mundo verdadeiramente fraterno. 


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