“Relacionamento a dois”: A delicada trama do Amor

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

O relacionamento a dois, já cantava o poeta Gilberto Gil, é uma proposta de um delicado bordado: “É a sua vida que eu quero bordar na minha…como se fosse o  pano e você fosse a linha…e a agulha do real nas mãos da fantasia…fosse bordando, ponto a ponto, nosso dia-a-dia”.

                        Trata-se de um compromisso entre duas “individualidades” que se (pre)dispõem a tecer uma nova história, fazendo uso das linhas com diferentes matizes de suas próprias (con)vivências. Um contrato que pode ser urdido em contornos afetivos, acrescidos ou não, de traçados jurídicos.

                        Além do vasto repertório musical que busca enaltecer e decifrar o “Amor a dois”, os mitos igualmente estão à serviço da compreensão dos intrincados mistérios humanos. E servindo a este propósito, o mito de Eros e Psiquê, em uma de suas possíveis interpretações, oferece através do desenvolvimento de sua trajetória arquetípica, um roteiro para a compreensão da história de amor de cada casal humano disposto a tecer seu próprio enredo:

                        Psiquê era uma jovem lindíssima, tão bela que pelos mortais era cultuada e por Afrodite, Deusa do Amor, invejada e ameaçada. No entanto, a veneração dos homens pela jovem era tão intensa que os impedia de desposá-la, e, preocupados com sua possível sina de solidão, seus pais buscaram o Oráculo de Delfos, no anseio de receber conselhos sobre a destino da filha. O Oráculo vaticinou que   Psiquê estava destinada a desposar um monstro.

                        Desapontados e tristes, confrangidos pela profecia, os pais submetem-se a mesma, abandonando a jovem no alto de um rochedo para que um monstro a resgate. Afrodite, indignada com a fama de Psiquê e indiferente ao seu destino, aumenta ainda mais seu infortúnio, ordenando seu filho Eros, Deus do Amor, a disparar uma flecha para induzi-la a apaixonar-se por alguém monstruoso e aversivo. Mas como o destino tem suas artimanhas, quando Eros dirige-se para cumprir sua tarefa, atordoa-se pela beleza de Psiquê, acabando por ferir-se com uma de suas flechas do amor, e, imediata e implacavelmente, apaixona-se pela jovem.

                        Transtornado, o filho de Afrodite, resgata Psiquê do rochedo e a leva para um palácio encantado, um lugar distante e mágico, no qual todos os desejos da jovem seriam atendidos, sendo advertida entretanto, de que a única ressalva e proibição a ser rigorosamente seguida, seria a de nunca vislumbrar o rosto do seu amado, para não quebrar o encantamento de tê-lo todas as noites, despedindo-se ao amanhecer. Por muito tempo, envoltos pela paixão, a vida de ambos foi idílica, mas com o passar dos dias, a jovem isolada, começou a sentir-se solitária e insatisfeita. Após uma série de intercorrências, a jovem transgredindo a proibição, ilumina e “vê” o rosto do seu marido, que parte para sempre, conforme havia prenunciado.

                        Ao vislumbrar o rosto de Eros, Psiquê fica encantada por sua beleza, uma vez que já estava enamorada por ele em função da intimidade de ambos, ainda que envolta na escuridão e mistério. Após perceber que o perdera definitivamente, a jovem passa a buscá-lo e, disposta a qualquer sacrifício para tê-lo novamente, submete-se a muitos desafios estabelecidos por sua sogra Afrodite, que pela severidade das provas estipuladas, pretendia levar Psiquê a desistir de seu filho Eros.

                        A jovem persiste e, por seu empenho e determinação, acaba ganhando a simpatia e compaixão de Zeus, Deus dos Deuses que, condoído, intercede por Psiquê junto a Afrodite. A mãe de Eros persuadida, resolve aprovar o casamento de seu filho com a jovem, união realizada no Olimpo, concedendo a Psique a imortalidade. Eros e Psique portanto, realizam um segundo casamento sagrado e abençoado por todos os Deuses Olímpicos.

                        Fazendo uma analogia entre o casamento dos Deuses com nossas uniões mortais, pode-se dizer que também se dão em dois estágios: o casamento da primeira fase, do tempo da paixão e o da segunda fase, que pode ser atingido ou não, do nível do amor. No mito, há um encontro e união iniciais, no qual o apaixonamento, com todo o seu cortejo de idealizações define o vínculo, seguido por um amadurecimento da relação com um casamento sagrado.

                        No tempo das idealizações ou da paixão, todas as expectativas de amor são lançadas na pessoa eleita, tida como perfeita, costumando-se inclusive, inadvertidamente, a dar pouco importância aos indícios que apontam que a(o) escolhida(o) não seja exatamente como se pensa, pois a suposta alma-gêmea traz consigo todos os predicados e ideais. Como no mito, a relação se dá envolta na obscuridade e na ignorância da paixão.

            Da mesma forma que Psiquê “enxerga” o seu jovem amante e descobre que realmente o ama, também precisamos iluminar a alma de nosso companheiro(a) para descobrir se somos capazes de aceitá-lo(a) em sua inteireza. A humanidade do outro e a desmitificação, cunhada na fase inebriante da paixão, deve ceder espaço para a comunhão real do casal. Deixar a agulha da realidade compor o cotidiano, como já sugeriu o poeta: ”E a agulha do real na mãos da fantasia fosse bordando, ponto a ponto, nosso dia-a-dia”.

                        Mas “enxergar” o outro requer muita determinação, persistência e coragem, pois envolve um delicado processo de autopercepção e percepção do outro, um desafio similar ao que Psiquê enfrentou para resgatar Eros, o amor. Dentre as muitas conscientizações, faz-se necessário identificar as possíveis “projeções” que possam estar regendo a relação e obstruindo o encontro real dos envolvidos.

                   “Projeção” é um mecanismo psíquico de “ver” no outro, comportamentos e traços de personalidade, tanto pertencentes a figuras da infância, como pais ou primeiros cuidadores, quanto perceber no outro, aspectos negativos que negamos em nós mesmos. As projeções obstruem o reconhecimento do companheiro(a) como pessoa real, transformando-o em uma tela de projeção de mal entendidos do passado ou de expectativas irreais do presente.

                         Importante esclarecer que não se trata do processo psicológico natural de realizar certas projeções do princípio feminino/ masculino (Anima/Animus) na pessoa amada, necessária para permear a escolha e a manutenção dos vínculos afetivos. As projeções tornam-se prejudiciais quando estão atreladas à situações mal-resolvidas do passado ou quando são excessivas e desestabilizantes.

                        O processo do reconhecer e aceitar o outro com verdade, exige a sabedoria para nos desapegarmos de nossos anseios de como gostaríamos que nosso companheiro(a) fosse, para a aceitação de como ele(a) é capaz de ser conosco e consigo mesmo.

                        A queixa de muitos casais consiste em sentir-se negligenciado(a) pela “desatenção” do cônjuge em atender seus anseios, traduzindo esta resistência como sabotagem ou má vontade. Costumo lembrar de uma metáfora que trago na memória há muitos anos, mas que infelizmente desconheço seu autor, uma analogia entre um casal e duas árvores frutíferas:

                     Podemos identificar a macieira e a laranjeira como cada um dos cônjuges, convictos de que a laranjeira não dá laranja para provocar a macieira, mas porque faz parte da sua natureza e a macieira encontra-se impossibilitada de oferecer laranja, mesmo que assim o desejasse. Da mesma forma que os cônjuges não são ou agem como o fazem, exclusivamente para irritar seu companheiro(a), mas porque faz parte da sua natureza. Uma integração possível, seria transcender as diferenças, neutralizar a acidez, compondo uma salada de frutas saborosa e passível de nutrir a ambos.

                        Uma vez que faz parte da conjugalidade, oferecer nutrientes emocionais, desde que os envolvidos estejam disponíveis para oferecer e receber afetivamente. Qualquer desequilíbrio nesta “troca”, pode acarretar desencontros, pois como em todo tipo de relacionamento, o que é excessivo ou precário, causa danos e “cristaliza” as vivências emocionais.

                        Pactos de doação/ganhos, controle/autonomia, responsabilidade/negligência e tantas outras combinações possíveis, são contratados veladamente entre os cônjuges quando da decisão de construírem uma relação duradoura. Porém quando no meio do caminho um dos cônjuges decide mudar o “contrato”, é preciso primeiro alertar e depois negociar suas mudanças com o outro. Estas mudanças no status quo requer um processo de (re)construção do relacionamento, com a revisão das motivações inconscientes que levaram a este modelo de contrato “oculto”, bem como, as emoções, crenças e comportamentos que perpetuam estas dinâmicas conjugais.

                        Mas as mudanças dos “contratos” velados e inconscientemente firmados no início do relacionamento, assim como todas as possíveis propostas de modificações na dinâmica do casal que venham a ser propostas, devem ser permeadas pelo respeito e pela consideração, uma vez que os equívocos que possam estar causando insatisfação ou desencontros, também é da responsabilidade de ambos.

                        Como em todos os relacionamento portanto, e inclusive entre casais, as dificuldade e as possíveis “feridas” da infância, familiares e/ou sociais, acabam repercutindo no cotidiano das interações. Os ecos emocionais do passado ditam regras e estabelecem leis ocultas na relação conjugal. Após o estabelecimento do contrato marital, seja firmado pelo afeto, pelo ritual ou pelo “papel”, as experiências da união dos pais vividas indiretamente na infância, são despertadas. O modelo de relação familiar vivenciado na família de origem tende a reger o funcionamento da família que está em formação.

                        Semelhante a Jornada de Eros e Psiquê, o casamento ou a união satisfatória e duradoura, é uma constante construção que somente poderá advir após o confronto dos muitos “fantasmas” que assombram os relacionamentos, e da sabedoria em aceitar e gerenciar as novas necessidades do casal e de cada individualidade que o compõem.

                        Como não há escolas que promovam o desenvolvimento das competências conjugais, é muito importante que cada pessoa que almeje uma união de amor, supra esta carência de (in)formação, colocando-se disponível para aprender e enfrentar os percalços e desafios desta “Jornada a dois”, evitando que a viagem naufrague, apesar do sentimento de amor que resiste e tenta sobreviver em meio ao caos de discussões, incompreensões e confusões emocionais que dominam o cenário dos conflitos conjugais.

                        Amar também se pode aprender e aprimorar, como toda arte. O sagrado da união a dois encontra-se na vontade de compartilhar sonhos e no capricho que cada enamorado dedique ao bordar seu amor na lida diária de compartilhar a vida. Podemos sempre buscar um amor amadurecido como o de Eros e Psiquê, considerando sempre nossa humanidade. Nossa Alma, Psiquê, anseia por encontrar Eros, o Amor, e com ele viver um amor eterno.

 

Referências:

A linha e o linho

Gilberto Gil

É a sua vida que eu quero bordar na minha
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
Fosse bordando, ponto a ponto, nosso dia-a-dia

E fosse aparecendo aos poucos nosso amor
Os nossos sentimentos loucos, nosso amor
O ziguezague do tormento, as cores da alegria
A curva generosa da compreensão
Formando a pétala da rosa da paixão

A sua vida, o meu caminho, nosso amor
Você a linha, e eu o linho, nosso amor
Nossa colcha de cama, nossa toalha de mesa
Reproduzidos no bordado a casa, a estrada, a correnteza
O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza

Relacionamento Conjugal: Estratégias para superação de conflitos

 

 

 

Categorias: Reflexões

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