Nos encontramos nas histórias que contamos.

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

Ficções, romances, lendas, contos ou roteiros de cinema são diferentes formas de “historiar” a vida, retratando esta aspiração humana de eternizar e compartilhar seus dramas, anseios e ideais. Os atos de bravura, desencantos, maldições e bênçãos dos personagens da ficção são transpostos para nosso mundo interno e vão sendo entrelaçados com nossas próprias dores, amores e temores.

E nesse uni(pluri)verso de histórias, surgem os Mitos como faróis a iluminar nossa jornada, pois os deuses com suas tramas revelam o potencial de luz e de sombra inscritos em nossa Alma. Para guardar as lembranças, a deusa Mnemosine foi evocada e, de sua união com Zeus, fez nascer as Musas, inspiradoras das artes, eternas guardiãs das vivências humanas, através da imaginação e da composição de obras que se perpetuam através das eras.

Mnemosine e suas filhas, as musas, portanto, retratam a necessidade de deixarmos a vida ecoando no tempo, impedindo que a memória se desvaneça nas trivialidades da vida diária, e fique circunscrita a manutenção e a satisfação das demandas materiais. Pois a alma e os deuses necessitam de tramas, dramas e conquistas para forjarem o sentido da vida, revestindo-a de dignidade e valores que a transformem em jornadas heroicas, que valham a pena serem vividas e perpetuadas.

Neste sentido de darmos um caráter memorável a nossa vida, a psicologia traçou um paralelo entre nossa existência e a Jornada do Herói, demonstrando que nossa vida também passa por estágios que nos convidam permanentemente a nos tornarmos pessoas melhores, superando nossos medos e limitações pessoais e ancestrais. A Jornada do Herói, descrita por Joseph Campbell, consiste em uma aventura estruturada em fases, consideradas universais e comum a todos os heróis ou heroínas e que pode funcionar como uma “ferramenta para se olhar a própria vida” (4, p. 15).

Olhar a própria vida como saga exige, inicialmente, que a forjemos com um anseio permanente de crescimento e aprendizado, nos permitindo reconhecer nossas conquistas e perdoar nossos equívocos, aprendendo a respeitar nossa história com a reverência que se deve ao sagrado, como se as musas, filhas de Mnemosine, estivessem acolhendo e protegendo cada busca de crescimento emocional.

A “saga do herói” surge apenas quando, frente aos desafios que a vida nos impõe, nos transformamos, nos tornamos mais conscientes e maduros, quando passamos pelas adversidades e permitimos que eles nos melhorem, ou seja, são proezas nas quais “o herói aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem” (5, p.131). No retorno, após a saga, nós como heróis ou heroínas, podemos expandir nossas conquistas, ajudando outras pessoas a (se)melhorarem.

Logo, por trazermos em nós este anseio pela evolução, nos deslumbramos com Luke Skywalker ou com Harry Potter, heróis que se retiram de seu cotidiano, aparentemente seguro e previsível e se lançam à desafios, enfrentando obstáculos, à princípio intransponíveis, e, que inspirados por uma força maior e regidos pela sabedoria, alcançam ideais que transformam, acima de tudo, a si mesmos, tendo o bem comum e a ascensão como molas propulsoras.

Quando uma pessoa entra em processo de análise ou psicoterapia, por exemplo, normalmente ela é trazida por um chamamento da alma, ou seja, por uma adversidade, uma angústia, uma insatisfação ou qualquer outro sintoma indicando de que algo a está bloqueando de usufruir de todo potencial que sua vida pode oferecer.

Neste momento, de autoconhecimento, Mnemosine e sua filha Clio, deusa da história, são chamadas para acompanhar o cliente nesta travessia por dimensões emocionais, organizando as lembranças desconexas e, à princípio sem sentido por ele trazidas, em um roteiro capaz de trazer uma maior compreensão e direcionamento para sua jornada. A esta história com sentido e coerência interna, dá-se o nome de trama.

Nossas vidas constituem uma trama, conforme afirma Hillman: “Contamos nossas histórias e somos as histórias que contamos. Mais que isso, somos a maneira como contamos nossa história” (2, p. 11) E nossas histórias acontecem no território da alma e abrigam os sonhos, as fantasias, as vidas-não-vividas que foram negligenciadas por nossas escolhas, a vida que escolhemos viver, as imagens, as cores e os cheiros que compuseram os cenários de nossas histórias. E todos estes eventos ocorridos, ou não, no mundo externo, estão regendo nossas vidas, independentes do quão estejamos conscientes disso.

Historiar a queixa no início do processo psicoterapêutico causa certa perplexidade e desconfiança, pois há uma sensação de perda de tempo, de ineficiência, uma crença de que eventos passados devem ficar intactos e imutáveis no lugar esquecido onde devem permanecer. Mas nem mesmo os deuses se submetem ao passado e, como nossas lembranças, burlam as eras ao se manifestarem em nossas histórias. Lembrando ainda que o tempo da alma é outro, um tempo não crono-lógico, e, Mnemosine é uma deusa, e, como tal, instável e mutante como as reminiscências.

No processo de autoconhecimento, no entanto, o presente não fica abandonado, pois as lembranças são evocadas na medida que se fazem necessárias para a compreensão do presente, lembrando que é comum a reedição de histórias emocionais mal resolvidas, como um anseio da própria vida de passar o passado a limpo.  Por esta razão, as lembranças devem ser tocadas e costuradas com o presente, dando sentido a todos os tempos verbais da nossa história.

A história da vida do cliente precisa ser rememorada, reavivada emocionalmente e, para tanto, muitas vezes o cliente é convidado à escrever suas memórias, uma espécie de autobiografia emocional. Faz-se necessário enfatizar a importância do envolvimento do cliente no processo de crescimento, pois observa-se que quando a pessoa não está efetivamente comprometida consigo mesma, pode limitar-se a cumprir uma tarefa terapêutica, de forma por vezes, displicente ou mecânica, sem se dar conta da riqueza de sua vida, da importância de cada capítulo de sua história.

Somente recaptulando cenas esquecidas, revendo “quem” fomos e “o que” e “como” vivemos até então, podemos desenvolver competência para re-escrever nossa vida, pois  como diz Hillman citando Berry: “O modo como imaginamos nossa história é o modo como formamos nossa terapia” e, continua: “o modo como imaginamos nossa vida é o modo como continuamos a vivê-la” (4, p. 41)

Como a Jornada do Herói é também uma forma de lermos e construirmos nossa história, podemos analisar em que parte da nossa jornada épica pessoal estamos, podemos curar nossas feridas e (re)significar momentos dolorosos, dando sentido as nossas vivências, retornando para o real propósito da nossa existência, algo como efetivamente tornar-se autor de nossa saga.

Fontes de Pesquisa

1 – Mitologia: mitos e lendas de todo mundo. Editora Caracter entertainment. 2011

2 – Hillman, James – Ficções que curam: Psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler.Campinas, SP: Verus, 2010

3 – Campbell, Joseph – O Herói de Mil Faces. São Paulo: Pensamento, 2007

4 – Campbell, Joseph Mito e Transformação. São Paulo. Ágora, 2008

5 – Campbell, Joseph – O Poder do Mito. São Paulo. Palas Athenas, 1990

 

 

Categorias: Reflexões

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