Capítulo VII

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

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CAPÍTULO VII

SEQUELAS I – GÊNESE DO BODE-EXPITÓRIO

O Desenvolvimento Psicossomático Sombrio da Criança Ferida

Neste capítulo será apresentado um Modelo de Base Somático para o entendimento da criança interior ferida, uma vez que a dor e a mágoa não expressas, em função do exílio emocional a que estão fadadas na infância, encontram-se paralisadas na musculatura do corpo adulto.

As inscrições sombrias maculadas no corpo, são estruturais e permanecerão para sempre, como provas jamais silenciadas dos crimes ao espírito sofridas na infância. São matizes de dores que contaminarão as relações futuras que a criança-ferida estabelecera com os outros e com a Vida. Conforme explicita A. MILLER in J. ABRAMS ¹¹7:

            [A verdade sobre nossa infância está encerrada em nosso corpo e, embora possamos reprimi-la, jamais poderemos alterá-la. Nosso intelecto pode ser logrado, nossos sentimentos manipulados, nossas percepções confundidas, e nosso corpo, ludibriado com medicamentos. Mas, algum dia, o corpo apresentará sua conta, pois é tão incorruptível quanto uma criança que, de espírito íntegro, não aceitará concessões ou desculpas e não deixará de nos atormentar, enquanto não pararmos de fugir à verdade.]

            Analisaremos a seguir, como é tecido este arquivo corporal das dores e como é formado este potencial de destrutividade corporal e psíquica, que cobrará seu tributo no futuro. Segundo D. BOADELLA ¹¹8, o conceito de “instinto de morte”, ainda que controverso, encontra fundamentação clínica somática na Vegetoterapia de W. Reich, a partir da análise da Destrutividade como resultante da libido frustrada e reprimida.

Esta energia psíquica reprimida as poucos instala-se no corpo, gerando bloqueios musculares, estabelecendo estados crônicos de defesa, uma vez que o organismo é provido de reflexos instintivos para lidar com o perigo e a ameaça. Este mecanismo chamado Reflexo do Susto, tem por objetivo lidar com emergências e pequenos períodos de alarme. Este mecanismo se expressa na detenção de uma ação, na contração muscular, na suspensão da respiração, na confrontação ou na espera do perigo.

            Se a ameaça é grave ou se recusa a desaparecer, como é o caso da existência das crianças-feridas apresentadas neste estudo, o padrão do susto se aprofunda, criando condições para fuga ou luta, impossíveis para uma criança vulnerável ao meio. Caso a ameaça persista, não sendo mitigadas pelas posturas adotadas, a criança-ferida pode passar a esconder-se, encolher-se, rendendo-se ou entrando em colapso psicológico.

Em termos ideais, os perigos internos e externos criam uma reação de mudança à nível somático apenas temporária, sendo que, ao passar o perigo, o organismo volta a atividade normal. Mas isso nem sempre acontece. Uma reação pode aumentar ou persistir até que se torne parte contínua de estrutura.

Numa perspectiva somática, o termo agressão, abrange todos os eventos internos e externos, que despertam o Reflexo do Susto. As agressões podem surgir de estados internos, de sentimentos de raiva, dependência, fome de contato, medo de ser abandonado ou até pela imaginação de um evento terrível. Eventos e sentimentos característicos, suscitados por abusos físicos e sexuais, bem como por crianças-feridas discriminadas por projeções sombrias, impostos pelas figuras parentais, promovendo na criança-ferida uma mescla de amor e ódio.

A agressão e o consequente Reflexo do Susto, envolvem uma série de posturas que alteram as ondas tubárias de pulsação energética, congelando-as, acelerando-as na agitação ou reduzindo-as no espessamento ou no colapso. A cronificação destes estados, acabam por tornar o organismo rígido e, depois, denso. À medida que os processos excitados, espasticidade e retesamento são mecanismos utilizados pela estrutura somática para tentar controlar esta excitação, podendo chegar ao uso da compactuação ou compressão. Essas condições são acompanhadas por sentimentos de raiva, fúria, controle, desafio e dúvida sobre si mesmo. Esta visão de KELEMAN ¹¹9, pode sofrer desdobramentos nas discussões à seguir, explicitando como se instala a destrutividade neste contexto:

Diversas manifestações de agressividade/destrutividade podem ser observadas na dinâmica do comportamento humano, a partir da localização somática do bloqueio. Observa-se que as áreas corporais e psicológica mais feridas por abusos, são as zonas de corpo/afeto imprescindíveis para o acolhimento de uma futura criança. Logo uma criança-ferida não possui, ou melhor, não desenvolve o continente interior necessário, para transformar-se em pai ou mãe acolhedores, uma vez que o amor fundiu-se com a dor e o ódio, e encontram-se amordaçados e bloqueados no corpo. O gesto de amor está congelado em corpos parentais desprovidos de vida.

As agressões internas ou do meio advindas, ao acionar o Reflexo do Susto definem e instauram os sete anéis de tensão específicos, sendo que as agressões com maior força estruturante são moldadas a partir da relação da criança com o meio imediato, na primeira infância composta pelos genitores, tendo a mãe como figura central.

Conforme elucida PIERRAKOS¹²0, os movimentos pulsantes da boca em busca do leite, quando frustrados, transformam-se em impulsos de morder e gritar. O movimento da libido que não se descarrega na prazerosa expressão de chupar, tratam de descarregar-se de forma violenta, que pode por sua reincidência adquirir forma espontânea, tornando-se o comportamento habitual que a pessoa ferida assume frente a situações que lhes sejam frustrantes.

O resultado somático é que os movimentos dos lábios, da mandíbula, da língua e da garganta se congelam. A boca pode estratificar-se numa expressão de amargura, a mandíbula pode ficar contraída na espera do encontro com a frustração, a língua e a garganta se restringem. É desta boca ferida que a criança-ferida receberá o primeiro beijo, o primeiro sorriso e desta garganta ferida ouvirá os primeiros sons da voz humana.

Quando a criança estica os braços em busca do aconchego materno ou paterno, e encontra o corpo desprovido de afeto, reage com ódio e hostilidade, e se em contrapartida os pais, reagem com uma atitude igualmente hostil e impessoal, a criança-ferida recuará levantando os ombros para apertar a si mesmo, numa tentativa de autoproteção, que é passível de tornar-se crônica, provocando isolamentos e impossibilitando a formação de vínculos na vida adulta. Esta falta de abraço e proteção é comum nos casos de maus-tratos e A.S.I., uma vez que os pais não protegem ou aconchega, mas agridem e abusam, traindo os anseios afetivos da criança.

Se ao expandir seus olhos em busca de proteção parental, se depara com um olhar distante, sem contato e/ou ameaçador, a criança pode paralisar seus movimentos vitais, transformando seus olhos num instrumento de agressividade em relação aos outros seres humanos, mantendo todos à distância com seu olhar. Refletindo, portanto, o olhar do agressor em seu próprio olhar.

Cada nova investida expressa corporalmente em busca de amor, se acompanhada de uma ameaça e/ou negativa do meio, acaba por estratificar o movimento incompleto, inviabilizando sua reincidência, gerando uma incapacidade na pessoa ferida de buscar o que aspira, acarretando uma frustração permanente capaz de gerar sentimentos hostis em relação à vida. Em seus corpos, os mesmos passos se repetem com os bloqueios musculares que paralisam os movimentos da vida. Esse processo total gera um ciclo, no qual a criança-adulto-ferida vê-se impossibilitada de transformar.

Segundo S. B. PERERA ¹²¹, esta alienação emocional e corporal acarreta com frequência uma “atrofia concomitante de sensações físicas em determinadas regiões do corpo”, podendo gerar uma distorção da imagem do corpo. Esta precária identidade com o self corporal, pode trazer sequelas para o desenvolvimento da criança-ferida.

Poder-se-ia afirmar portanto que, esta perda do corpo, quase inevitável é deflagrada quando as necessidades de sobrevivência tornam-se imperiosas. A. LOWEN¹²², aborda as consequências desastrosas para o desenvolvimento psíquico da criança, ao sugerir que [minha tese afirma que o ego repousa sobre dois fundamentos: se um dos dois estiver faltando, o ego será vulnerável (…) Estes dois fundamentos são: (1) a sua identificação com o corpo e (2) a sua identificação com a mente.]

            O corpo, portanto, sede dos sentimentos, está fadado à congelar-se, mutilar suas sensações e exilar suas emoções, tornando-se frágil e incapaz de estruturar adequadamente o ego, não desenvolvendo recursos para afirmar-se enquanto individualidade. Tornando-se vulnerável aos abusos físicos e sexuais que os adultos venham à impor-lhes.

Este acaba por constituir-se no destino da criança-ferida e vitimizada: desenvolver-se sobre o estigma de sobreviver para aplacar a dor da criança-ferida do adulto responsável por protege-la, o qual encontra-se encouraçado, tendo sua emoção aprisionada em seu corpo. Sendo assim, caso a criança-ferida do pai ou da mãe tenha sido abusada sexualmente, deixar-se-á abusar, silenciando-se, conformando-se e sobrevivendo. Ou, caso a criança-ferida do pai ou da mãe tenha sido espancada, deixar-se-á espancar calada para garantir, quem sabem, migalhas de amor em função desta existência. Neste período estas migalhas de amor garantem sua vida.

A criança-ferida, vitimizada por abusos contínuos, torna-se, portanto, alvo fácil para identificar-se com aspectos sombrios dos pais e da existências, constelando em seu universo psíquico o Complexo do Bode Expiatório, conforme será descrito em capítulos procedentes.

Igualmente esta constituição somática, carregada de energias reprimidas, oriundas basicamente de episódios de interações interpessoais alicerçadas na desproteção, logo no medo e ódio intensos, levarão a criança-ferida à estruturar corporalmente um potencial de agressão e destruição, pronto a ser desencadeado e tornado fúria, caso as tensões internas ou extremas tornem-se insuportáveis. Acerca deste mecanismo de defesa do ego, (já esboçado na presente discussão no Reflexo do Susto), o capítulo referente ao Medo, tecerá maiores esclarecimentos, ampliando a análise a partir do corpo, para a concomitante compreensão dos registros cérebro-emocionais do medo quando da apresentação do Distúrbio da Tensão Pós-Traumática.

  1. O REENCONTRO DA CRIANÇA INTERIOR. São Paulo. Cultrix. 1994. P. 180.
  2. CORRENTES DA VIDA. São Paulo. Summus. 1992. P. 68.
  3. ANATOMIA EMOCIONAL: a estrutura emocional. São Paulo. Summus. 1992. Pp. 76-78
  4. A BIOENERGIA DA AGRESSIVIDADE (miog.) pp. 56-74.
  5. O COMPLEXO DO BODE EXPIATÓRIO. São Paulo. Cultrix. 1991. P. 62
  6. O CORPO TRAÍDO. São Paulo. Summus. s/d. p. 250.
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