Capítulo I

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

manografia-2-001

CAPÍTULO I

ABUSO SEXUAL INCESTUOSO – A.S.I.

Por agressão

[Se ao menos uma pessoa tivesse compreendido o que estava acontecendo comigo e tivesse vindo em minha defesa…isto poderia ter modificado minha vida inteira.] J. ABRAMS cita relato de A. Miller ¹.

O objetivo maior deste capítulo é o da denúncia. É dar voz a pedidos como este, de ajuda tardia, feitos pelos adultos que sobreviveram a sua infância de dor e mágoas e que sentiram o desamparo de não possuir adultos confiáveis para dividirem seu desespero. A este desamparo irremediável encontra-se fadada a criança – ferida, adulta ou ainda criança cativa à vitimização incestuosa, pois trata-se da dor perpetrada pelos próprios “protetores” da criança. Conforme delata SS. FORWARD & C. BUCK ²:

[O incesto é poderoso. Sua devastação é maior do que a das violências sexuais não incestuosas contra crianças, porque o incesto se insere nas constelações das emoções e dos conflitos familiares. Não há estranho de que se possa fugir, não, não há uma casa para onde se possa escapar. A criança não se sente mais segura nem mesmo em sua própria cama. A vítima é obrigada a aprender a conviver com o incesto; ele abala a totalidade do mundo da criança. O agressor está sempre presente e o incesto é quase sempre um horror contínuo para a vítima.]

            Muitos destes adultos – feridos, quando crianças – recorreram à profissionais, tentaram demonstrar em palavras, quase sempre sussurradas, ou em símbolos seu sofrimento. Mas suas dores foram taxadas de imaginação ou fantasia. Pois em se tratando de Abuso Sexual Incestuoso é comum o relato das crianças abusadas serem tratados como imaginários, conforme demonstram E. BASS & L. THORNTON ³, [existe a tendência de se trair novamente a criança molestada, acusando-a de ‘imaginação fértil’ em vez de se considerar o fato de que o papai, titio ou vovô realmente eram capazes de abusar de uma criança.]

            O intuito, portanto, é evidenciar que estes familiares nos quais a criança confia são capazes de abusá-la sexualmente. Como seres traídos, são capazes de trair, pois atendem à uma demanda interna de dor e desamparo que os compelem à abusar, talvez para mitigar o próprio sofrimento interno de também ter sido uma criança-ferida molestada, o que consiste a dinâmica da Maldição Familiar nesta pesquisa estudada.

Para compreender e acolher as crianças-feridas incestuosa e sexualmente abusadas, faz-se necessário ampliar algumas discussões, desfazendo certos mitos do que seja o A.S.I., o que demandará dois níveis de análise, ou seja, faz-se necessário definir incesto e diferenciá-lo de Abuso Sexual Incestuoso:

            Segundo R. M. GOLDENSON & K. N. ANDERSON4 a palavra incesto é de origem latina incestus e significa impuro. Logo, uma relação impura, que retrata o envolvimento sexual entre parentes consanguíneos ou entre pessoas aparentadas por vinculação afetiva.

O A. S. I., trata-se de relação sexual envolvendo relações díspares, ou seja, nas quais há o prevalecer da vontade de uma pessoa sobre a outra. Como exemplos, estão as relações, com base em aspectos morais e de autoridade, entre padrasto/enteada, professor/aluno e patrão/empregado. Conforme elucida H. SAFFIOTI 5:

                [As relações entre irmãos, assim como a relação entre primos é quase sempre uma relação par, uma relação entre iguais. Raramente a diferença de idade entre irmãos ou entre primos é tão grande a ponto de assegurar o exercício da autoridade por parte de um sobre o outro (relação díspar). Em termos estatísticos, trata-se de uma relação par (…) sempre que a relação for entre iguais, nenhuma das partes requer proteção por ter tido um direito lesado. Ambas as partes engajaram-se na relação de amor sexual (por distinção a amor parental-filial). Neste contexto, à rigor, o conceito de incesto só deveria nomear contatos sexuais (cuja gama é extensa, podendo cobrir desde um afago até o ato sexual completo e outros de penetração).

            Por via de consequência, contatos sexuais entre ascendentes e descendentes (obviamente duas gerações diferentes) e entre parentes colaterais com grande diferença de idade e a presença de domínio de um sobre o outro estão excluídos do verdadeiro incesto, entendendo-se que para a realização concreta deste, concorrem duas vontades e dois desejos (portanto convergente). Propõe-se denominar este tipo de contatos sexuais, cujos atores não mantém uma relação par, mas uma relação díspar de Abuso Sexual Incestuoso – A. S. I.]

  1. COHEN 6, acrescenta à esta questão da imposição do desejo de uma pessoa sobre a outra, a noção de intencionalidade no que se refere ao ato sexualmente praticado, alegando portanto que [o que define o abuso sexual não é o ato em si, que na maioria das vezes dispensa a relação sexual completa entre adulto e a criança, mas a intenção com que é praticado.] Ou seja, uma vez que haja satisfação sexual do adulto no contato físico com a criança, isto já caracteriza abuso de sua inocência.

O A. S. I., pode ser portanto constituído por uma série de atitudes sexuais, conforme ilustra BUTLER 7, tratando-o como qualquer ato sexual normal, oral ou genital, ou ainda qualquer ato explicitamente sexual estabelecido entre um adulto e uma criança que encontra-se numa posição de dependência sócio-econômica-afetiva, rendendo a este adulto respeito e confiança. E. BASS & L. THORNTON 8 enfatizam no tocante à esta vulnerabilidade, que as crianças [dependem dos adultos: primeiro, para conseguir sobreviver; e, depois, para ter afeto, atenção e para poder compreender o mundo em que vivem.] Isto confere um aspecto ainda mais devastador à esta criança-ferida, uma vez que envolve confiança e traições.

Sobre as muitas traições, descreve H. SAFFIOTI 9, que para a criança vitimizada, se dá a traição da confiança no adulto familiar e supostamente protetor. A criança vivencia a conduta da mãe que, por “desconhecimento” ou omissão, não a protegeu também como traição. O silêncio dos irmãos e de outros parentes que convivem com a família e suspeitam ou tem certeza do A.S.I., é igualmente vivido como nova traição. No caso de haver, vítimas sucessivas, cada nova vítima atacada passa a ser vista pela(s) anterior(es) como traidora. Mas talvez a traição mais dolorosa seja a do próprio corpo, que por mecanismo de excitação e descarga, responde ao contato físico com o biológico alívio de tensões e sua concomitante sensação de prazer. Traição que leva o agressor a supor uma satisfação sexual e, consequente conivência da vítima. Acrescenta ainda, a autora, que o A.S.I., é uma tragédia capaz de abrigar outras traições, que ferem todos os envolvidos no ato incestuoso: a mãe ou pai não agressor, sente-se brutalmente traído pelo cônjuge/agressor; sente-se traído por não poder externar sua ira contra o rival, que se trata de membro de sua própria prole. E o agressor vivencia a traição de sua própria criança-interior.

A extensão destas traições está atrelado à forma como ocorre o A. S. I., que pode ser realizado de duas maneiras: por sedução e/ou por agressão. No primeiro caso, há um pretenso ceder ou consentir por parte da vítima, que pode ser induzida a deixar-se abusar sob o pretexto de agradar o adulto, de deixa-lo feliz, de ganhar doces ou brinquedos, de “fazer coisas normais entre as pessoas que se gostam”. A criança deixa-se seduzir, dirigindo-se a este adulto traidor em busca de afeto e proteção, confrontando-se abruptamente com a excitação e o desejo sexual entre o que o adulto deseja que faça e o que ela realmente deseja fazer, terminando num conflito de prazer e culpa. Neste conflito interior, anseios de agradar o adulto querido, mesclam-se a repulsa dos atos que este impõem à criança-ferida.

Há ainda o A. S. I. por agressão, o qual implica o uso da força e violência, provocando dor e sentimentos de raiva e ódio. Este segundo tipo de A.S.I., interessa diretamente o presente estudo, por desencadear reações de terror análogas aos episódios de maus-tratos infantis, as quais serão pormenorizadamente explicadas em capítulos posteriores. Em ambos os casos no entanto, as vítimas acabam emocionalmente lesadas com sequelas vitalícias, conforme relato apresentado na REVISTA VEJA10: [Com a afetividade quebrada, às vezes destruída, tanto meninos como meninas enfrentam um drama comum, um horror que pode acompanha-los por toda a existência. Desenvolvem uma tendência a ficar emocionalmente infantilizados. Tornam-se medrosos, dependentes e exibem uma forma de timidez própria de quem pode ser dominado om facilidade. Muitos desenvolvem instintos sádicos, que podem ficar na fantasia ou ir além dela.]

Faz-se necessário ainda, diferenciar o Abuso Sexual Incestuoso do Incesto e da Barreira do Incesto, enquanto organizadores da personalidade, uma vez que foge ao escopo do presente estudo. Clarifica-se apenas que ao tratar o incesto ou o arquétipo do incesto, enquanto estruturadores psíquicos, leva-se em consideração que os anseios incestuosos ficam restritos ao universo dos afetos e dos símbolos, não havendo portanto, uma transgressão da barreira do incesto, para a efetivação física ou corporal de tais desejos de amor e união. No A. S. I., ao contrário, o contato corporal e a transgressão da proibição, levam a manifestação destrutiva e sombria do arquétipo do incesto, cuja função está muito mais ligada a Eros do que a Tanatos, conforme esclarece R. STEIN 11: [Essa herança (o anseio de união) tornou-se parte da herança psíquica do homem (…) Ela aparece sob formas arquetípicas como o casamento celeste do rei e da rainha, o casamento místico do Deus Sol e da Deusa Lua e a união incestuosas do par irmão e irmã. Como todas essas imagens do casamento sagrado – hierosgamos – são também representações da alma unindo-se a seu par, elas são todas incestuosas, podendo o termo Arquétipo do Incesto ser convenientemente usado para incluir todas essas impressões.]

  1. STEIN12, conclui que o Arquétipo do Incesto, constelaria na psique humana para [transformar o impulso sexual, de início algo puramente biológico, no instrumento supremo do desenvolvimento psicológico do homem. E o que é mais importante, em sua ânsia de encontrar seu par espiritual, o homem acaba por descobrir e moldar sua própria alma.]

Infelizmente, as crianças-feridas incestuosas e sexualmente abusadas, saem tragicamente feridas no tocante a estas aspirações de união e entrega afetiva, tanto para si mesma como para compartilhar com o outro, uma vez que sua história de buscas já foi traída e maculada em seus primeiros vínculos familiares. Ela está fadada à vivenciar exílios interiores, da sua emoção, do seu corpo e da sua alma, e também à exílios exteriores igualmente traumáticos, uma vez que são comuns a retirada da criança-ferida de sua família, de seu grupo e de sua vida infantil. Talvez estes “banimentos” sejam versões contemporâneas dos banimentos tribais a que estavam sujeitos os ancestrais da humanidade ao transgredirem o tabu do incesto, será apresentada por intermédio das concepções de S. FREUD 13.

Segunda a psicanálise, o incesto é acima de tudo um tabu e enquanto tabu é universal, uma vez que tabus sociais ou leis contra o incesto existem praticamente em todas as sociedades, variando o grau da proibição de uma sociedade para outra.

R, TANNAHILL14, admite que enquanto tabu, o incesto foi fabricado no mecanismo humano desde o próprio início, amplamente identificado como natural a humanidade, afirmando [que foi o incesto e não o canibalismo – o primeiro tabu do mundo. As reações sociais frente à transgressão do tabu do incesto oscilaram desde um divinizar dos envolvidos até a culpabilização com a pena de morte.]

            Para S. FREUD15, as restrições do tabu são distintas das proibições religiosas. Estas não se baseiam em nenhuma ordem divina, mas pode-se dizer que se impõem por sua própria conta. São diferentes das proibições morais por não se enquadrarem em nenhum sistema que declare de maneira bem geral que certas abstinências devem ser observadas e apresenta motivos para essa necessidade. As proibições dos tabus não tem fundamentos e são de origem desconhecidas.

A punição pela violação de um tabu, sem dúvida, foi originariamente deixada a um agente interior automático, ou seja, o próprio tabu violado se vingava. Tal ideia de punição irremediável pode subsidiar a concepção de Mecanismo de Destruição, presente nas crianças-feridas, que seria um agente interno automático de expurgar a culpa pelo delito da transgressão.

Quando numa fase posterior, surgiram as ideias dos deuses e espíritos, com os quais os tabus se associavam, esperava-se que a penalidade proviesse automaticamente do poder divino. A criança-ferida, quando, ainda, envolta na “participation mystique” (período de imersão no inconsciente coletivo, antes do constelar do ego) , devido a sua idade precoce ou a labilidade de sua estruturação egóica, pode sentir esta ameaça arquetípica, culpabilizando-se e/ou temendo uma punição dos deuses.

Em outros casos, provavelmente como resultado de uma ulterior evolução do conceito, a própria sociedade encarregava-se da punição dos transgressores, cuja conduta levaria seus semelhantes ao perigo. Neste período surge a necessidade de banimento e exclusão, com o intuito de evitar o contágio da sociedade com o ato e o ator sombrios. É o constelar do complexo do Bode Expiatório, que será tratado “A posteriori”. O argumento da transgressão, passível de punição humana ou divina, justifica a dificuldade, inclusive, contemporânea de aceitar o A. S. I., como real, conforme denúncia a REVISTA VEJA16: [é fácil compreender porque o abuso de crianças é um assunto difícil de ser encarado por qualquer pessoa. Está envolvido, ali, um dos mais sagrados tabus das civilizações – o incesto, que diferencia o homem dos animais e garante o equilíbrio fundamental a uma pessoa.]

            Em suma, para a Psicanálise e algumas abordagens apresentadas, o Tabu do incesto é o primeiro grande não, o que vai capacitar o indivíduo a aceitar outros limites e a se tornar um ser integrado e social. Não é, portanto, uma proibição como outra qualquer, mas a base da estrutura do indivíduo. A partir desta premissa, pode-se mensurar o prejuízo quando a criança é levada a desrespeitá-lo. Segundo B. KHUN17: [o incesto traz a fantasia de que, transgredindo essa primeira ordem, pode-se transgredir quaisquer outras e voltar a ser como um bebê, sem regras nem limites” … “mas a transgressão, desse limite compromete a estrutura da pessoa, que se sente monstruosa.]

  1. BASS & L. THORTON 18 citam o diálogo de um abusador de crianças em estado de recuperação, da Parents United, quando questionado sobre os motivos que o levaram à molestar sua filha e a enteada:

[O que fez com que isso fosse visto como possível?

            “…eu próprio fui molestado quando era criança, minha mulher também foi molestada quando na infância…Nunca tive direitos. Nem mesmo o direito de ter emoções…Não sabia porque apanhava…Agora, acho que apanhava por expressar minha individualidade…mas na época só percebia que me batiam, algumas vezes porque estava fazendo barulho, ou, outras vezes, por estar muito quieto.] (…) [quando menino, um dia tirou a roupa com outra criança. A mãe da outra o chamou de “monstrinhos” e essa mulher de certa forma me explicou o que havia de errado comigo. Isso ficou gravado em minha mente e acho que é isso que fez com que me parecesse possível abusar de criança. Eu sou um monstro.]

Este comovente relato traduz a dor da vítima e a dor do abusador, deixando entrever a tragédia familiar que se perpetua em sucessivas gerações. Sentir-se um monstro, desprezando a si mesmo e àqueles que possuem seu próprio sangue, constitui o drama, a Maldição Familiar.

            “Sentir-se um monstro” é uma das máculas na alma da criança ferida. Está fadada a sentir-se inocentemente responsável pelo abuso, uma vez que sua vulnerabilidade à (pseudo) sabedoria do adulto, não lhe deixa outra escolha. Conforme relato de um sobrevivente, citado por SAMPAIO & RAMOS19: [Eu me sentia culpada e calada. Acho que a culpa é a única defesa que a criança tem para aceitar e justificar o abuso. Afinal, os pais sabem o que é melhor, e se eles abusam dela, ela passa a achar aquilo normal. Além disso, eu tinha pavor de ser posta fora de casa.]

A expulsão de casa costuma se dar com frequência nos casos de A. S. I. (vide intervenção primária protetora da criança no capítulo XI), seja porque a Criança ferida foi morar com outra família, seja porque foi institucionalizada.

Sempre há, portanto, um banimento de seu grupo familiar, que por sua vez, pode dar-se tanto pelo afastamento físico da criança como pelo afastamento emocional. Trata-se do exílio que está fadado quem rompe o tabu, conforme analisado anteriormente.

Tal ameaça de abandono justifica o pacto de silêncio e segredo que impera no universo familiar destas crianças e que corrobora o exilamento de si mesma, conforme denúncia C. G. JUNG in C. P. ÉSTES 20: [Guardar segredos nos isola no inconsciente], acrescentando ainda a autora que segredos guardados equivalem à túmulos psíquicos, verdadeiras zonas mortas, nas quais jazem a dor e o potencial de criação da pessoa silenciada. Este assunto será retomado no capítulo intitulado Síndrome do Segredo.

Romper o silêncio pode ser mais ameaçador para a criança-ferida – uma vez que confronta o desconhecido – do que manter-se na dor já conhecida. Existem alguns medos básicos que envolvem a revelação do segredo, conforme descreve T. FURNISS21:

[1) Medo de não ser acreditada;

            2) O medo em relação as ameaças para não revelar;

            3) As ansiedades em relação às consequências da revelação, para a própria criança e para sua família;

            4) O medo de punição e rejeição pelos membros das famílias e dos profissionais;

            5) Finalmente, nós precisamos dar licença explícita para comunicar em linguagem sexual, introduzindo, nós mesmos, uma linguagem sexual.]

            Ainda que psiquicamente represente morte, acarretando confusões e conflitos a longo prazo desestruturantes, o segredo consiste, igualmente, numa manobra de sobrevivência, que deflagra mecanismos inconscientes de ocultação, tendo o esquecimento pela própria vítima, como uma das formas de autoproteção, segundo corrobora A. MILLER in J. ABRAMS 22:

[Uma dificuldade notável – na realidade um obstáculo concreto – para a recordação surge como resultado do mecanismo de esquivar-se da verdade, que antes foi necessário à sobrevivência e que pode manifestar nas fantasias e nas imagens dos contos de fadas, assim como nas perversões crônicas – desempenham a função de ocultar. Organizam o sofrimento atual em exato acordo com a padrão do passado e, desse modo, asseguram que o sofrimento anterior, insuportável, permaneça reprimido.]

Esta compulsão de ocultar o sofrimento, pela reincidência do mesmo, justifica a tendência dos sobreviventes de A. S. I. de repetir o roteiro de vítima em outras situações de vida. O esquecimento da vitimização original pode acarretar dramas sucessivos na vida da vítima.

Portanto, pode-se afirmar que um dos sintomas de quem sofreu A. S. I., é apaga-lo da consciência. A criança precisa tanto da família, das figuras de autoridade, que para preservá-las, recorre a uma tática de sobrevivência, separando o “pai/agressor/do segredo” do “pai do dia-a-dia”, como se não fossem a mesma pessoa. Desta forma, consegue viver o cotidiano, porque ela própria se divide. Daí estes “esquecimentos”: é como se o abuso não acontecesse com ela, mas com seu corpo, do qual ela sai, se desliga – e apaga as lembranças daquele momento. Essa dissociação ocorre em situações tão difíceis de suportar que a pessoa cessa de ter contato com suas emoções.

Mas apesar dos recursos psíquicos defensivos mobilizados, a indomabilidade do inconsciente manifesta-se, subvertendo as defesas egóicas, e atuando no seu modo operante de compensação, segundo aborda C. P. ÉSTES 23: [A psique é extremamente compensatória, o segredo irá de qualquer jeito descobrir uma forma de sair, se não for em palavras concretas então sob a forma de melancolias repentinas, de acessos de fúria intermitentes e misteriosos, de todos os tipos de dores,, esforços e tiques físicos, conversas inacabadas que terminam de repente e sem explicação e súbitas reações estranhas a filmes e até mesmo a comerciais de televisão.]

Este afastamento das emoções, exige o concomitante desligamento das sensações corporais, o que acabará por construir Mecanismos de Destruição, conforme explica o texto acima. Este mecanismo constituir-se-á por manifestações indiretas das dores sofridas e registradas no corpo e que cobrará seu tributo na vida adulta, perpetuando a vitimização da criança-adulto-ferida ou gerando novas vítimas. Algo similar a ideia da punição que a quebra do tabu, inevitavelmente reivindica. Este tema já citado, será discutido em capítulos posteriores.

A criança perde desta forma a posse do próprio corpo, de sua sexualidade e de si própria. \une-se ao esquecimento, outro fator que impossibilita a criança-ferida de contar seu drama, conforme cita E. BASS & L. THOURTON 24: [A criança raramente conta. Além de sentir que seu corpo físico foi violado, percebe que sua integridade se perdeu.] Um sentimento de indignidade, portanto, se apodera da vítima, tornando-a incapaz de auto-proteger-se por sentir-se um monstro, uma coisa. Nas palavras de uma sobrevivente25:

[A impotência e o masoquismo ainda se fazem sentir…Esta impotência, muitas vezes, roubou-me a dignidade humana. Eu me transformei numa “coisa”.]

            Outra sequela característica das vítimas de A. S. I. é, portanto, a auto-estima rebaixada. Esta sensação de menos valia pode levar a vítima à comportamentos promíscuos, num anseio de resgatar seu próprio corpo, por intermédio de contatos sexuais sucessivos, que acabam conduzindo-a a uma sensação de vazio e de mais acentuada menos-valia, devido as características autodestrutivas e degradantes que tais buscas de relação podem adquirir.

A vítima coisifica-se, colocando-se disponível para ser usada, uma vez que este é o registro inconsciente que traz consigo sobre sua própria existência: nascida para seu usada, abusada em seu corpo e em seus anseios afetivos. E este modelo de relação de uso, estende-se à todos os seus relacionamentos, transformando-a também num ser que usa, e esta é a tragédia da metamorfose da vítima em agressor.

Transformado em “coisa” e numa relação de uso, a criança-ferida é usada para atender à alguns propósitos familiares, conforme descreve FALLER 26 ao citar as quatro funções do A. S. I.:

[Primeiro: na satisfação dos sentimentos sexuais;

            Segundo: uma expressão de sentimentos coléricos;

            Terceiro: um esforço para expressar e receber atenção;

            Quatro: uma oportunidade de exercer o poder.]

            Estas funções podem ser transpostas para o universo dos maus tratos, uma vez que estas vitimizações igualmente, atendem à demandas paternas inconscientes, conforme será analisado no capítulo à seguir.

  1. O REENCONTRO DA CRINÇA INTERIOR. São Paulo. Cultrix. 1994. P. 177.
  2. A TRAIÇÃO DA INOCÊNCIA: O Incesto e sua devastação. Rio de Janeiro. Rocco. 1989. P. 10.
  3. NUNCA CONTEI À NINGUÉM. São Paulo. Horper & Row do Brasil. 1985. P. 8
  4. DICIONÁRIO DO SEXO. São Paulo. Ática. 1989. P. 146.
  5. ABUSO SEXUAL INCESTUOSO. Encontro Anual ANPOCS. Canhambu. 1991. P. 11.
  6. REVISTA VEJA. São Paulo. Abril. Janeiro. 1996. Ano 29. P. 77.
  7. A CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO. O Trauma do Incesto. Rio de Janeiro. Zahar. 1979. P. 15.
  8. NUNCA CONTEI A NINGUÉM. São Paulo. Horper & How. 1994. P. 177.
  9. ABUSO SEXUAL INCESTUOSO: Encontro Anual ANPOCS. Canhambu. 1991. pp. 97-98.
  10. REVISTA VEJA. São Paulo. Abril. Janeiro. 1996. Ano 29. P. 177.
  11. INCESTO E AMOR HUMANO: A Traição da Alma na Psicoterapia. São Paulo. Símbolo. 1978. pp.78-79
  12. Idem. Ibidem.
  13. TOTEM E TABU. Rio de Janeiro. Imago. 1974. pp. 10 – 40.
  14. O SEXO NA HISTÓRIA. Rio de Janeiro. Francisco Alves. P. 5/6.
  15. TOTEM E TABU. Rio de Janeiro. Imago. 1974. P. 32.
  16. São Paulo. Abril. Janeiro. 1996. Ano 29. P. 77.
  17. REVISTA MARIE CLAIRE. São Paulo. Abril. Março. 1994. Ano 6. P. 59.
  18. NUNCA CONTEI A NINGUÉM. São Paulo. Horper & Row do Brasil. 1985. P. 35.
  19. REVISTA MARIE CLAIRE. São Paulo. Abril. Março. 1994. Ano 6. P. 58.
  20. MULHERES QUE CORREM ATRÁS DOS LOBOS. Rio de Janeiro. Rocco. 1997. P. 466.
  21. ABUSO SEXUAL DA CRIANÇA. Porto Alegre. Artes Médicas. 1993. P. 44.
  22. O REENCONTRO DA CRIANÇA INTERIOR. São Paulo. Cultrix. 1994. P. 178.
  23. MULHERES QUE CORREM COM OS LOBOS. Rio de Janeiro. Rocco. 1997. P. 467.
  24. NUNCA CONTEI A NINGUÉM. São Paulo. Harper & Row do Brasil. 1985. P. 6.
  25. Idem. Ibdem.
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