Capítulo II

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

CAPÍTULO II

MAUS-TRATOS

A Criança Abusada Fisicamente

O presente capítulo, será iniciado pela voz de uma criança-ferida, no exato momento da agudez de sua dor. Para que o adulto possa ouvi-la e compreendê-la, tornando-se capaz de acolhê-la em seus braços humanos e em seu comprometimento profissional, uma vez que apenas se compromete aquele que foi tocado na alma pela dor do outro e de sua própria criança traída.

JOSÉ MAURO VASCONCELOS27, falou desta dor que sua criança-interior-ferida traz cativa em sua alma, na voz de “Zezé”, personagem de “O meu pé de laranja lima”, um dos filmes mais sensíveis sobre a pobreza material e emocional que tragicamente embala o crescer de muitas crianças brasileiras:

[(…) Naquela noite papai não saíra. Ninguém se encontrava em casa, salvo Luís que já dormira. Mamãe deveria estar chegando da cidade. Tinha vezes que ela fazia serão no Moinho Inglês que a gente só a via aos domingos.

            Eu resolvera ficar perto de papai, porque assim não faria arte alguma. Ele se sentara na cadeira de balanço e olhava perdidamente para a parede. Seu rosto sempre com a barba por fazer. Sua camisa nem sempre muito limpa. Quer ver que não saíra para jogar manilha com os amigos porque não tinha dinheiro. Pobre papai, devia ser triste, saber que a mamãe trabalhava para ajudar a sustentar a casa. Lalá já entrara para a fábrica. Devia ser duro ir procurar uma porção de empregos e voltar desanimado sempre com aquela resposta: ‘Precisamos de uma pessoa mais moça…’

            Sentado na soleira da porta eu contava as lagartixas branquinhas na parede e desviava a vista para olhar papai.

            Somente naquela manhã do Natal eu o vira tão triste. Precisava fazer alguma coisa por ele e se eu cantasse? Eu poderia cantar bem baixinho que iria, tinha certeza, melhorar seu abandono. Passei o repertório na cabeça e me lembrei da última música que aprendera com ‘seu’ Arivaldo. O tango. O tango era das coisas mais bonitas que eu já ouvira. Comecei baixinho:

            ‘Eu quero uma mulher bem nua

            Bem nua eu quero ter…

            De noite ao clarão da lua

            Eu quero o corpo da mulher…’

            – Zezé!

            – Pronto, papai.

            Levantei-me prestamente. Papai devia estar gostando muito e queria que eu viesse cantar perto.

            – Que é que você está cantando?

            Repeti.

            ‘Eu quero uma mulher bem nua.’

            – Quem ensinou essa música a você?

            Seus olhos tinham adquirido um brilho fosco como se fosse ficar louco.

            – Foi ‘seu’ Ariovaldo.

            – Eu já disse que não queria que andasse na sua companhia.

            Ele não dissera nada. Acho que nem sabia que eu trabalhava de ajudante de cantor.

            – Repita de novo a canção.

            – É um tango da moda.

            “Eu quero uma mulher bem nua..’

            Uma bofetada estalou no meu rosto.

            – Canta de novo:

            ‘Eu quero uma mulher bem nua…’

            Meu rosto quase não se podia mexer, era arremessado.

            Meus olhos abriam-se para se tornar a fechar com o impacto das bofetadas. Eu não sabia se devia parar ou se tinha de obedecer…Mas na minha dor tinha resolvido uma coisa. Seria a última surra que eu levaria, seria a última mesmo que morresse para isso.

            Quando ele parou um pouco e mandou cantar, eu não cantei. Olhei papai com um desprezo enorme e falei:

            – Assassino! Mate de uma vez. A cadeia está aí para me vingar.

            Tomado de fúria, só então ele se ergueu da cadeira de balanço. Desabotoou o cinto. Aquele cinto que tinha duas rodelas de metal e começou a me xingar apoplético. De cachorro, de porcaria, de traste, vagabundo, se era assim que falava do seu pai.

            O cinto unia com uma força danada sobre meu corpo. Parecia que o cinto tinha mil dedos que me acertavam em qualquer parte do corpo. Eu fui caindo, me encolhendo no cantinho da parede. Estava certo que ele ia me matar mesmo. Ainda pude ouvir a voz da Glória que entrava para me salvar (…) Ela segurou a mão de papai e segurou o golpe.

            – Papai. Papai. Por amor de Deus, me bata, mais não bata mais nessa criança.

            Ele jogou o cinto sobre a mesa e passou as mãos sobre o rosto. Chorou por ele e por mim.

            – Eu perdi a cabeça. Pensei que ele estava caçoando de mim. Fazendo pouco caso.

            Quando a Glória me apanhou do chão, eu desmaiei.

            Quando eu me apercebi das coisas, ardia em febre. Mamãe e Glória estavam à minha cabeceira e me diziam coisas carinhosas. Na sala havia movimento de muita gente. Eu doía a cada movimento. Depois eu soube que queriam chamar o médico, mas não ficava bem.

            Glória trouxe um caldo que fizera e tentou me dar algumas colheradas. Mal podia respirar, quanto mais engolir (…) Mamãe passou a noite comigo e só bem na madrugada se levantou para preparar-se, precisava ir trabalhar. Quando ela veio se despedir de mim eu me agarrei ao seu pescoço.

            – Não vai ser nada meu filho. Amanhã você ficará bom…

            – Mamãe…

            Falei baixinho, talvez a maior acusação da minha vida.

            – Mamãe, eu não devia ter nascido. Devia ter sido como o meu balão…

            Ela alisou tristemente a minha cabeça.

            – Todo mundo deve ter nascido como nasceu. Você também. Só que às vezes, Zezé, é levado demais…]

            “Zezé” retrata muito bem a criança-ferida que emerge das páginas deste estudo, bem como, que pulsa na alma e no corpo de muitos adultos-crianças-feridas que gritam sua dor sepultada há anos, em solidão e tristeza. Dor que se tenta compor em teorias e didáticas, lançando mão de todos os recursos possíveis para que se seja acolhida, respeitada e superada. Este é o objetivo desse trabalho: dizer para os muitos “Zezés” da vida, que ainda há esperança de que suas feridas cicatrizem e seu sorriso retorne ao seu rosto perdido pelo desfigurar das dores constantes e intransponíveis.

“Zezé” retrata ainda, a criança-ferida que fala neste trabalho, por ser uma criança que ama a vida, seu pai, sua família. Uma criança que em silêncio, “brincando com a lagartixinha” observa e tenta compreender as dores dos adultos que a rodeiam. Uma criança que se julga responsável por estas dores, e que traz consigo o desejo de curá-las, não se importando em colocar a si mesma em situação de risco. Ela apenas queria das ao ‘papai’, alento para suas angústias interiores.

Como “Zezé”, as crianças-feridas destas páginas, acreditam que quando o adulto pede que se aproxime, é para sentir-se feliz com sua presença infantil e sente-se profundamente traída quando, neste contato, se vê abusada física ou sexualmente.

“Zezé” trazia em sua alma, um mundo com músicas, sonhos de futuro, anseios de união e troca de afetos. Mas seu “papai” via seu mundo interior desmoronar-se frente aquele amor à vida que já perdera, e que no entanto, estava refletido no sorriso do filho, o qual, infelizmente, sombriamente interpretou como “ele estava caçoando de mim. Fazendo pouco caso.” Eis a drama da criança-ferida, trazer em seu prazer de viver, o tributo de atenuar as dores das crianças-feridas de seus próprios pais. Estando fadadas a nunca serem vistas pelo que são ou fazem, mas pelo que seus pais pensam ou necessitam que seja. A “mamãe” de “Zezé”, precisou acreditar que a culpa do espancamento estava no filho e não no olhar distorcido de papai, por isso, precisou acreditar que o filho foi “levado demais”.

A família de Zezé”, pôde afastar-se de sua miséria cotidiana, dedicando-se aos ferimentos físicos da criança. “Zezé” livrou-os de naquele Natal confrontarem-se com a falta de comida, de festa ou de dinheiro, livrou-os da sombra familiar e “purgou” a dor de todos na sua febre, exilado em sua cama, afinal ele foi culpado pela surra, ele é “levado” e mau, todos os outros, portanto, são bons e dedicados. “Zezé neste momento representa o bode-expiatório, aquele que possui a sombra, que carrega o fardo do mau de seu grupo familiar ou social.

Como criança-má devidamente punida, não teve direito a médico ou hospital. Sua “maldade” não pode expor seu grupo familiar à situações constrangedoras. Esta dinâmica punitiva e vitimizante leva “Zezé” a questionar o valor da própria existência, o que chamou a maior acusação de vida, alegando que não devia ter nascido. E esta criança-ferida tem razão em seu protesto, pois sua existência individual encontra-se comprometida pela existência sombria de seus pais.

O pavor e os estados de medo extremos comprometem o desenvolvimento físico e emocional distanciando-as de seu próprio corpo e emoção, conforme será descrito no capítulo referente ao desenvolvimento psicossomático das crianças-feridas. O anseio de agradar o “papai” leva “Zezé’ à cantar uma canção. Outras crianças submetem-se à abusos para também minimizar a dor de seus pais, presenteando-os com a anulação de sua existência individual, transformando-se num ser co-dependente da insanidade do adulto. Esta dinâmica ocorre tanto no abuso físico como no abuso sexual.

Esta anulação e/ou rejeição do próprio existir pode se dar, portanto, pela necessidade da criança de viver a chamada vida-não-vivida dos pais. Segundo S. SHORT in J. ABRAMS28, ao citar C. G. JUNG, elucida que esta vida-não-vivida seria [aquela parte da vida afetada por circunstâncias que haviam impedido os pais de irem em busca de sua própria satisfação, ou aquela parte da vida de que se haviam furtado, consciente ou inconscientemente.] E acrescenta [Nada influencia mais as crianças do que os fatos silenciosos que ficam no fundo] da vida familiar. E no fundo da vida familiar destes pais, encontram-se os espancamentos sofridos em criança e esquecidos, suas frustrações pelas parcelas de vida perdidas, seu desespero pela perda de si mesmos.

Este processo traz como legado, um sentimento de vazio, que segundo ainda S. SHORT in J. ABRAMS29, os analistas junguianos chamariam de a desesperançada perda da alma. O presente trabalho apropria-se desta ideia e a transfere e amplia no universo das crianças espancadas, porque entende que estas crianças são espancadas devido à projeções de aspectos sombrios dos pais sobre estes filhos. Igualmente, acredita que há uma perda desesperançada da alma nas crianças-feridas por espancamentos porque as agressões e violências contínuas levam-nas a perder o contato com seu corpo e consequentemente com sua própria alma ou individualidade.

As ideias de J. DELUMEAU30, são utilizadas para corroborar com a última premissa acima apresentada, a qual sugere que em momentos de pavor extremos se dá inevitavelmente uma perda da alma, para tanto, o autor faz uso de informações antropológicas narrando que, ainda hoje, índios de aldeias afastadas do México conservam entre suas crenças, a da Doença do Pavor, ou seja, [um doente perde a alma em função de um pavor. Pensa-se então que ela é retirada pela terra ou por pequenos seres maléficos chamados ‘chaneques’. Daí a urgência de ir a uma ‘curandeira de terror’ que graças a uma terapêutica adequada, permitirá à alma reintegrar-se ao corpo de que escapou.]

LOWEN31, corrobora tal ideia ao descrever o caráter esquizoide, cuja dinâmica psíquica evolui sedimentada no medo severamente reprimido, através de relações comprometidas entre pais e filhos Alega que a ausência de vida que estas pessoas trazem em seus corpos, seria como se lhes tivessem arrancado a alma em situações extremas de pânico. Desprovidas de alma, tais pessoas passam à vagar pelo mundo, com lábil identidade corporal e psíquica, com reduzida capacidade de entrega ao prazer, suspensos entre a vida e a morte.

A cura nestes casos, tal qual a dos índios com a Doença do Pavor, depende de terapêutica adequada, que muitas vezes são ministradas por terapeutas ou os modernos curandeiros do terror, que auxiliam seus pacientes a recuperarem a alma um dia perdida. Tal ritual moderno exige tempo, conhecimento, disponibilidade pessoal e uma profunda crença na possibilidade de reconstrução humana, feito a dos grandes curandeiros e xamãs. A discussão da cura será realizada pormenorizadamente em capítulos posteriores.

Caberia, no entanto, advertir que a exposição constante a situações traumáticas, levam a criança-ferida a desenvolver uma “frieza” em relação ao sofrimento alheio, uma falta de empatia, conforme alerta GOLEMAN32, concebendo-a como uma falha psíquica: [Uma linha de falha psicológica é comum em estupradores, molestadores de crianças e muitos perpetradores de violência familiar. São incapazes de empatia. Essa incapacidade de sentir a dor das vítimas lhes permite dizer a si mesmos mentiras que encorajam o seu crime. Para os estupradores, a mentira inclui: ‘As mulheres que querem ser estupradas’, ou ‘e ela resiste, é só pra bancar a difícil’. Para os molestadores: ‘Não estou machucando a criança, só demonstrando amor, ou, ‘Isto é apenas mais uma forma de afeto’; Para pais violentos: ‘Isto é só boa disciplina’. Todas estas autojustificações foram recolhidas do que pessoas em tratamento por causa desses problemas dizem ter dito a si mesmas quando brutalizavam suas vítimas, ou se preparam para fazê-lo.]

            A pesquisa acima citada é recente, assim como são recentes os estudos acerca da violência doméstica, conforme demonstram os dados históricos, fornecidos por V. N. A. GUERRA33:

[As primeiras incursões da Medicina na área da violência de pais contra filhos (de que se tem notícia) surgiram em 1860, na França, através do Professor Ambroise Tardieu, que deu a conhecer à comunidade científica os resultados de seu trabalho intitulado ‘Étude médico-legale sur les sevices et mauvais traitements exercés sur des enfants’. Neste trabalho ele apresenta 32 casos (18 mortos) de crianças submetidas a sevícias, metade das quais com idade inferior a cinco anos. Além de descrever as lesões sofridas (fraturas diversas, queimaduras, hematomas, etc), o professor Tardieu aborda a questão da discordância entre as explicações fornecidas pelos seviciadores e as características das lesões. De certa forma, pode-se dizer que o professor Tardieu foi o 1º que estabeleceu claramente o conceito da criança maltratadas.]

Apesar dos anos transcorridos, a questão referente às conceitualizações deste fenômeno maus-tratos, ainda permanece controvertida. Buscando sintetizar as ideias de diferentes clínicos, V. N. A. GUERRA34propõe:

[Todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica de um lado, numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que crianças  e adolescentes têm de ser tratadas como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.]

            A autora35, amplia ainda esta concepção de maus-tratos alertando para o que chamaram de Infância e Adolescência Martirizada, ou seja, [pessoa atormentada, afligida, mortificada. Do grego ‘martyr = testemunha], afirmando portanto que [a violência doméstica costuma ser chamada de crime perfeito, já que quase sempre tem apenas a vítima por testemunha.] Esta concepção remete as discussões para o universo da vítima sacrificial ou expiatória, que será descrita posteriormente, as quais consistem na vitimização não passível de vingança ou justiça.

Visando adentrar estes “crimes perfeitos”, a presente pesquisa pretende igualmente, além de denunciar, resgatar estes “filhos da violência  doméstica”, vendo-os como os vêem, sejam, enquanto:

            [Pessoas em condição especial de desenvolvimento;

            Cidadãos, sujeitos de direitos e deveres;

            Indivíduos para os quais, desgraçadamente, o lar não foi um lugar seguro e, sim, uma fonte de sofrimentos incalculáveis, praticados, muitas vezes, com a hipócrita desculpa de ser ‘para seu próprio bem’.

            Jovens que conseguem ainda, em muitos casos, serem suficientemente fortes para gritar ao mundo sua tragédia.

            Jovens-crianças e adolescentes – de respeito, por conseguirem sobreviver (o que não quer dizer superar) à violência doméstica ‘daquilo que chamam lar’, e dignos de respeito por parte de todos nós adultos, responsáveis por protege-los e promove-los.]

            Acrescenta-se a esta reflexão sobre a importância do resgate destas almas feridas, um trecho do depoimento do impiedoso assassina de crianças Jürgen Bartsh, citado por M. A. AZEVEDO & V. A. N. GUERRA37, sobre sua própria infância marcada pela extrema violência física por parte de seus pais adotivos, na República Federal da Alemanha, 1966. Este trecho faz lembrar muito a educação que ainda hoje se perpetua em diversos universos infantis:

[Sempre me diziam: cala a boca, és uma criança e nada tens a dizer. Tu não és mais do que uma criança. Não fales a não ser que te perguntem.]

            Provavelmente ele se calou e sobreviveu como o faz tantas outras vítimas expiatórias, porém com o passar dos anos sua ferida sangrou e gerou vítimas.

Esta dinâmica sombria, que ensaia uma explicação para esta tragédia, será apresentada nas discussões que a partir do próximo capítulo se iniciam.

  1. MEU PÉ DE LARANJA LIMA. São Paulo. Melhoramentos. 1968. P. 40.
  2. O REENCONTRO DA CRIANÇA INTERIOR. São Paulo. Cultrix. 1994. P. 185.
  3. Op. Cit. p. 187.
  4. HISTÓRIA DO MEDO NO OCIDENTE. São Paulo. Summus. s/d. pp. 321-329.
  5. O CORPO TRAÍDO. São Paulo. Summus. S/d. pp. 321-329
  6. INTELIGÊNCIA EMOCIONAL. Rio de Janeiro. Objetiva. 1995. p. 119.
  7. VIOLÊNCIA DE PAIS CONTRA FILHOS: Procuram-se vítimas. São Paulo. Cortez. 1984. P. 37.
  8. Op. Cit. p. 57.
  9. Op. CIT. p. 95.
  10. INFÂNCIA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. Fronteiras do Conhecimento. São Paulo. Cortez. 1993. P. 34.

        

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