Capítulo X
CAPÍTULO X
A CAMINHO DA CURA
Cessaram os abusos e neste momento as feridas ocultas nas profundezas do inconsciente sangram, as dores estão silenciadas pelo entorpecimento da memória, e o corpo mutilado em suas emoções. Desta forma se apresenta o exílio da Alma, da criança-ferida e da criança-adulto-ferida, após a sucessão de desamparos, medos, abusos e desilusões com que a vida se forjou.
O sofrimento destas pessoas é inegável, ainda que possa estar obscurecido de sua fonte original, os abusos, transvestindo-se em outras queixas e lamúrias, talvez mais aceitáveis para a consciência e para a comunidade. Este estado de desencanto pode cristalizar-se durante uma vida inteira, constituindo-se num “sofrimento cego”, incapaz de promover o crescimento humano da criança-adulto-ferida, aprisionando-a ainda mais em muralhas de proteção obsoletas e estagnárias.
Há um momento, no entanto, em que episódios da vida externa, suscitam uma busca de algo desconhecido, alguma coisa que possa aplacar perdas, fracassos, denúncias, sintomas ou problemas da existência recém constelados, algo que torne as crianças-adulto-feridas impotentes diante do destino arrebatador que lhes descortina e que as conduzam, como um chamamento irresistível à iniciarem o caminho de busca de sua totalidade humana.
Segundo E. NEUMANN137, seria o constelar do Arquétipo do Caminho, ou seja, aquele trajeto ritual que conduz o ser humano à peregrinar em busca de si mesmo. Este arquétipo, milenarmente percorrido, tem sua origem já na pré-história, onde os homens eram comprometidos a erigirem santuários em cavernas nas montanhas, adornando-as com imagens de suas caçadas, visando enaltecer os animais que garantiam sua subsistência. Era uma vida cultuada na possibilidade cotidiana.
Este ritual do caminho foi adquirindo diferentes nuanças culturais, ao longo do tempo, assumindo a forma de ritual consciente no qual o peregrino percorre um caminho ritual desde a periferia até o centro, em direção ao santuário. Trajeto muito parecido ao da descoberta do coração em algumas abordagens psicoterápicas corporais, nas quais o terapeuta e o cliente vão conscientemente desbloqueando e despertando as energias psíquicas contidas na periferia do corpo, no intuito, de abrir caminho ao coração, centro do santuário corporal.
Tais peregrinações rumo à totalidade, igualmente são trilhadas pelos povos, numa espécie de ritual coletivo, vivenciado nas procissões religiosas. Ainda que, conforme elucida E. NEUMANN138 [A via crucis – o caminho do Calvário de Cristo – é uma outra forma mais altamente desenvolvida desse arquétipo; nele, o caminho do destino torna-se o caminho da salvação e, com suas próprias palavras “Eu sou o caminho”, esse arquétipo atinge uma nova fase, em que se torna completamente interior e simbólico. Esse nível determina todos os complementos das gerações seguintes de fiéis, que “trilharam” o caminho cristão interior. Sobretudo, o símbolo do caminho arquétipo tem exercido uma influência universal na consciência e na orientação ideológica do homem moderno.]
E sintetiza, afirmando que o padrão determinante deste arquétipo é a evolução de um comportamento originariamente inconsciente do indivíduo, encaminhando-se rumo ao objetivo de atingir o sagrado, com uma evolução concomitante, da própria consciência. Tal caminhar é igualmente imprescindível para a família da criança-ferida, que precisa peregrinar, saindo da imersão de sua inconsciência sombria, até atingir, um mais consciente acerca de seus segredos e compulsões.
Que este processo é imperioso, pode-se supor com facilidade, mas será que a conscientização e redenção individual de uma criança-ferida, possui a força necessária para romper com esta compulsão de vitimizações sucessivas? Para responder esta inquietante pergunta, é preciso percorrer ainda, muitos territórios da Alma desta própria criança-ferida, tornada adulto caminhante, trilhando sua própria recuperação e redenção. Ao final deste ensaio teórico, talvez, já se tenha esboçado uma resposta.
O caminhar da criança-adulto-ferida é um viajar por terrenos íngremes, com percalços e muitas pedras pontiagudas capazes de fazer sangrar. O sofrimento sofre até atingir um estado de compreensão da realidade que comporta o sofrimento criativo, uma vez, que o sofrimento quando renovador, faz parte integrante do viver, conforme descobriu Kirsch na sua convivência com C. G. JUNG, descrita por J. ABRAMS139 [o presente mais importante que C. G. JUNG me deu e que talvez tenha dado a toda a humanidade – é a aceitação do sofrimento como uma necessidade.] Advertindo que a humanidade deve evitar o sofrimento cultuar o sofrimento cego, uma vez que o sofrimento redentor e criativo somente se manifesta no sofrimento consciente.
Nas palavras do próprio C. G. JUNG IN J. ABRAMS140, [acho que, por sua vez, Deus concedeu-me a vida e poupou-me de ficar petrificado. Assim, sofri e fui infeliz, mas parece-me que a vida nunca faltou e que mesmo na mais negra das noites…pela graça de Deus pude ver uma luz maior. Em algum lugar parece existir uma grande delicadeza nas trevas abissais da Deidade.]
Realizar a passagem do sofrimento cego, envolto em trevas, para o sofrimento consciente, capaz de iluminar evoluções espirituais, é tarefa que necessita de um guia, o interno deve ser evocado sempre, o externo muitas vezes. Para adentrar mundos feridos é necessário conhecer racional e emocionalmente como são feridas as crianças. Saber quais as dores que mais sangram e matam o espírito. Para realizar este perscrutar da alma humana, tem-se que olhar atentamente para as dores que choram a humanidade em todas as suas épocas. Esta tarefa primeira, foi esboçada, ainda que de forma bastante tosca nos capítulos precedentes.
Nas reflexões que ora se iniciam, serão analisados os muitos caminhos que se pode percorrer para curar ou amenizar as feridas dos sobreviventes. Caberia inicialmente, enaltecer estas crianças-adulto-feridas por sua garra de viver, uma vez que somente a partir desta sobrevivência é que se pode adentrar do universo das possibilidades existenciais com toda gama de oportunidades de redenção e reconstrução. Portanto, o presente estudo, tratará do desativar dos mecanismos de defesa obsoletos, da vivificação do corpo sepultado, do despertar das emoções adormecidas. Fará para tanto, uma viagem que didaticamente será dividida em dois âmbitos: o das feridas na criança da experiência concreta, chorando suas dores e carecendo de intervenções imediatas e no âmbito da criança-ferida já adulta, que chora os abusos já extintos na realidade presente. Novamente, faz-se necessário esclarecer que a análise não será linear e estanque, mas dinâmica, relacionando por vezes o trabalhando com a criança-interior-ferida ao trabalho da criança-ferida concreta.
Advertências, no entanto, precisam ser feitas quanto aos riscos desta viagem de retorno da Alma, pois as dores sucessivas ao serem infringidas na infância, sobrecarregam um ego débil, ainda sendo constelado, com dores profundas que o marcarão para toda vida. Dores que tecerão seu destino, feito as Moiras, deusas do Destino, desfiando todo seu potencial de construção e destruição. Não se pode esquecer ainda, que estas crianças-feridas vitimizadas alcançam a vida somente após dolorosas depressões, muitas lagrimas, perdas e vazios, momentos desesperados que chegam muito próximos da destruição.
No início da travessia, a luz que a criança-ferida traz na alma ainda é tênue e corre o risco de ser tragado pela escuridão. A mesma escuridão que anoiteceu a Alma dos adultos feridos que a vitimizaram. Para fortalecer a crença no potencial de recriação dos caminhos em busca da cura, caberia compartilhar neste momento, de início da travessia, do poema “Eros e Psiquê”, de Fernando Pessoa, poema que traz a suave esperança do êxito no final da aventura de ir ao encontro de si mesmo.
[Conta a lenda que dormia
Uma princesa encantada
A quem só despertaria…
Um infante que viria
De além do muro da estrada
Ele tinha que tentado
Vencer o bem e o mal
E antes que já libertado
Deixasse o caminho errado
Pelo que a princesa vem
A princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera
Sonha em morte a sua vida
E orna-lhe a fronte esquecida
Verde
Uma grinalda de hera
Longe
Infante esforçado
Sem saber que intuito tem
Rompe o caminho fadado
Ele é dela ignorado
Ela, para ele, ninguém
Mas cada um cumpre seu destino
Ela, dormindo encantada
Ele, buscando-a sem tino
pelo processo divino que faz existir
a estrada
E se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada afora é falso.
Ele vem seguro
E vencendo estrada e muro,
Chega onde, em sonhos
ela mora.
Ainda tonto do que houvera
A cabeça em maresia
Ergue a mão e encontra a hera e vê
Que ele mesmo era
A princesa que dormia.]
Descrevendo o “processo divino que faz existir a estrada”, este poema fortalece a crença de que cada ser humano tem à cumprir uma lenda pessoal, realizando seu destino, independentemente do quão obscura possa se mostrar a estrada. Certa vez, a Psicoterapeuta Ivani Alves de Lima Carollo, durante um curso de Formação de Psicoterapeutas Corporais, ano 1990, alertou que “não importa o quão triste ou miserável seja a história do cliente, sempre existirá uma possibilidade de (re)construção”. Esta ressalva na crença de que o cliente, feito o infante é capaz de vencer estrada e muro, é fundamental para a Alma dos psicoterapeutas que recebam para seus cuidados profissionais e humanos, crianças-adultos profundamente feridos, cujas dores podem mobilizá-los técnica e emocionalmente.
A crença de que há uma grinalda de hera guardada nas profundezas da Alma, um “self” capaz de florescer, faz com que se rompa qualquer caminho sombriamente fadado, e ainda que por uma predestinação desconhecida, se deixe o caminho errado, do ego errante, para encontrar a própria Vida antes adormecida.
Munidos desta crença, é possível dar continuidade a este caminhar, que passará por muitas e diferentes estações de ser nesta travessia de resgate e de cura das muitas crianças-feridas com as quais as famílias feridas se compõem. No capítulo seguinte, serão abordadas as possibilidades de intervenção frente à denúncia de abuso sexual incestuoso, as quais podem ser extrapoladas, guardando as devidas particularidades, às medidas a serem tomadas em casos de maus-tratos infantil.
- A GRANDE MÃE. São Paulo. Cultrix. 1996. P. 23.
- Idem. Ibdem.
- O REENCONTRO DA CRIANÇA INTERIOR. São Paulo. Cultrix. 1994. P. 70.
- op. Cit. p. 71.