Capítulo XII

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

CAPÍTULO XII

SÍNDROME DO SEGREDO

Dores silenciadas

Vithor Hugo, em “Os Miseráveis”, constata que [Ninguém guarda um segredo tão bem quanto uma criança.] Para a s crianças feridas vitimizadas, esta característica constitui parte de sua tragédia existencial, pois as dores segredadas são aquelas que amordaçarão a sua voz e a sua Vida. Nas palavras de uma criança-ferida:

[Estamos sozinhos com os nossos segredos; não há ninguém que possamos abraçar…E, se não existe contato, toque ou liberdade de falar, por assim dizer, não pode existir o sentimento de que uma pessoa está cuidando de outra. Se não consigo exprimir os meus sentimentos, não sou passável de amor, não tenho vida.]

            O segredo possui tão expressiva relevância no universo da vitimização que foi denominado, por alguns autores, de Síndrome do Segredo, a qual envolve importantes aspectos interacionais que necessitam ser compreendidos e devidamente conduzidos terapeuticamente. O segredo é a sombra do abuso que oculta muitas outras sombras, conforme foi analisado anteriormente.

Além de silenciar da criança-ferida por medo das ameaças que o agressor lhe impões, tais como, os de matar a mãe, sua família ou a própria criança, T. FURNISS 155, descreve alguns aspectos interacionais do segredo que diretamente influem na estruturação da personalidade da criança-ferida e sua interação com a realidade.

Inicialmente, torna-se imprescindível diferenciar Mentira e Negação, uma vez que estas manobras psíquicas da mentira consciente e da negação inconsciente são passíveis de provocar confusões. A mentira nos casos de Abuso Sexual Incestuoso, vem da necessidade que a criança-ferida sente de autoproteger-se, ou porque teme as ameaças do agressor e/ou por medo de não ser acreditada e protegida. A negação constitui uma não-percepção do ato abusivo, ou seja, a criança e a família não percebem os indícios evidentes do abuso. A terapeuta R. KOSCHAR 156, afirma que uma das sequelas comuns aos sobreviventes de A. S. I., é a dificuldade de estar por inteiro em uma relação, de estabelecer intimidade, corroborando esta ideia com o seguinte relato de caso:

[A dissociação chegou ao extremo no caso de Luz, que apesar da proximidade física com três namorados, acreditava ser virgem e nunca tomou precauções para não engravidar. ‘Ficávamos horas nus trancados no quarto e eu achava que não acontecia nada. Uma vez, um amigo bateu na porta. Senti como se estivesse entrando de novo em meu corpo, vi meu namorado abraçado sobre mim e pensei: ‘Puxa logo quando a gente ia ter uma relação completa’. Só agora sei que a gente estava tendo uma relação completa. Outra vez, outro namorado insistia para ter relações e ela não queria. ‘Virei de lado, ele começou a me acariciar e não senti mais nada. Pensei: ‘Insistiu tanto para depois desistir’. Ele não tinha desistido, mas depois de anos de abuso, era como se minha vagina não sentisse mais nada.]

            A negação acima descrita, pode ser compreendida pelos mecanismos de dissimulação utilizados pelo abusador para encobrir o abuso, ou seja, são atitudes do abusador para anular o abuso durante a própria interação abusiva. Para tanto, a natureza e a experiência do abuso é negada e anulada em três níveis contextuais. T. FURNISS 157 desta forma os descreve:

[a) Pelo contexto em que ocorre o abuso;

  1. b) Pela transformação da pessoa que abusa na ‘outra pessoa’;
  2. c) Por uma camada interacional adicional de negação através dos Rituais de entrada e saída.] Este último descrito no capítulo referente ao apego ao agressor.

No que tange à negação do abuso durante o próprio ato abusivo, o autor esclarece que o abusador procura anular a exta realidade do abuso. Tanto as crianças-feridas em processo de vitimização como as crianças-adulto-feridas ao relembrarem o abuso, descrevem-no em meio a escuridão, silêncio e sem nenhum contato visual. Desta forma, o abusador procura dissimular o ato, estabelecendo uma dissociação entre as sensações físicas do abuso vivenciadas corporalmente pela criança e o contexto interacional criado pela pessoa que abusa.

O obscurecimento da cena abusiva é, na maioria das vezes, reforçada pela transformação da pessoa que abusa em outra pessoa. Esta mutação se dá devido as alterações faciais do adulto em estado de excitação, associadas à modificações comportamentais, com gestos diferentes, padrão incomum de linguagem, tom de voz alterado e comportamento físico estranho. Nas descrições de T. FURNISS 158:

[A anulação através da dissociação da realidade externa do abuso sexual durante o ato sexual não permite à criança perceber a realidade como realidade e nomear a experiência de abuso como abuso. É como se a pessoa que abusa estivesse falando ao rosto da criança: ‘o que você quer dizer, nada está acontecendo, não é? Enquanto a penetra sexualmente por baixo. As pessoas que abusam geralmente tentam negar qualquer aspecto de relacionamento real entre elas e a criança durante o abuso, e tentam evitar qualquer reconhecimento claro daquilo que está acontecendo. Durante o contato intensamente físico e corporal humanamente possível, elas tentam desconectar-se totalmente da criança em termos psicológicos.]

Este aspecto da preservação da pessoa que abusa transformada em outra pessoa, foi relatado no capítulo intitulado Identificação com o Agressor, juntamente com a explicação acerca dos rituais de entrada e saída do abuso. Ritual que anuncia e encerra o ato abusivo, tentando destacá-lo da realidade objetiva, transformando-o em fragmento de dor, dissociado da memória e da consciência, esquecido nas profundezas do inconsciente.

Neste momento, após a descrição de como o abuso se abriga nas sombras, pode-se compreender como se dá seu contágio sombrio por várias gerações. Visando o rompimento desta Maldição Familiar, à seguir serão apresentados alguns manejos terapêuticos e humanos necessários para que a libertação da vítima e de sua família se realize.

Antes, no entanto, de adentrar o silêncio, faz-se necessário refletir acerca da advertência realizada por T. FURNISS159, no que tange a disponibilidade dos profissionais e adultos de ouvir a denúncia da criança-ferida vitimizada, seja a criança-ferida no presente, seja a criança ferida no passado, alegando que a dinâmica interacional tecida entre terapeuta e vítima, norteará as possibilidades do desvendar ou não, do profundos segredos da Alma:

[A natureza verdadeiramente interacional da motivação torna-se óbvia quando compreendermos que a criança está tão motivada a revelar o abuso sexual, quanto nós estamos motivados a escutar. Isso significa querer e ser capaz de lidar com a mensagem. Nós enviamos constantemente mensagens muito sutis a clientes e famílias sobre aquilo que eles podem e aquilo que não podem nos contar. Eu iria ao ponto de dizer que a emergência de questões inconscientes do cliente+ e paciente é fortemente influenciada por nossa própria motivação, como profissionais, para trazer à luz essas questões.]

            Devidamente conscientes das repercussões que os silêncios do terapeuta impõem aos segredos do cliente, pode-se discutir os meios possíveis para auxiliar que as vozes há tanto tempo emudecidas, se revelem. O primeiro passo, conforme já foi descrito é a disponibilidade da escuta, sem preconceitos ou julgamentos, tanto em relação à criança-ferida, quanto ao agressor e a família envolvida.

Esta comunicação precisa ser clara, utilizando a nomenclatura sexual para designar atos sexuais. É comum os envolvidos, incluindo a criança-adulto-ferida, esquivarem-se da descrição objetiva do ato abusivo. Tal manobra na comunicação, corrobora com as muitas dissimulações que encobrem o abuso.

Nos casos em que a criança-ferida está sendo abusada, faz-se necessário levantar provas que permitam comprovar o abuso, para proteger a criança. Nestes casos, um diagnóstico físico pode ser realizado, desde que se caracterize um ato abusivo com penetração ou com danos físicos aparentes.

A esta investigação acerca da ocorrência ou não, do abuso, D. C. RENSHAW160, propõe fases à serem seguidas:

A FASE UM, consiste na Coleta de Dados, na qual visa-se obter um levantamento da História Clínica da criança ferida e de sua família. Esta reconstituição histórica, preferencialmente intergeracional é fundamental em função da trama familiar na qual o abuso sexual incestuoso é tecido. Acrescidos a estes dados, faz-se necessário averiguar outros fatores de risco, tais como, existência de sentimentos de vingança dirigidos ao outro genitor; período excessivo de permanência de um dos genitores com a criança, de maneira não usual; e, outros. Para tanto, pode-se fazer uso de questionários, entrevistas individualizadas e/ou com o grupo familiar.

Ainda na FASE UM, se fazem necessários períodos de observação e investigação centrados na criança-ferida, os quais podem se dar a partir de observação lúdica, preferencialmente por meio de bonecos sexualizados e marionetes.

Outro recurso igualmente válido para as crianças-adulto-feridas, é o desenho. Este meio de expressão que dispensa as palavras, permite que se “fale” do abuso, sem trair a Síndrome do Degredo. K. G. FALLER161, descreve que (os desenhos feitos por vítimas podem mostrar pernas abertas ou separadas (indicando vulnerabilidade ao abuso sexual) ou pessoas sem braços e mãos (incapacidade de resistir aos abusos) ou com partes íntimas ou detalhes de áreas genitais (preocupação com o abuso sexual) ou descrever a vítima triste ou com raiva.]

As crianças-adulto-feridas, costumam fazer desenhos com algumas das características acima citadas, sem no entanto, compreendê-los de início, uma vez que o abuso em si encontra-se expressivamente distante da consciência. O paulatino desnudamento da mensagem simbolizada nos desenhos, podem levar às lembranças do abuso.

Os Testes Projetivos podem, igualmente se tornar úteis, desde que tenha em mente que os elementos apresentados, nem sempre revelam a natureza do traumatismo sofrido pela criança, uma vez que, sinais de abandonismo, de carência, de confusão de personagens parentais e tantos outros podem estar correlacionados a outros tipos de abusos domésticos, tais como, abusos psicológicos, adoções não reveladas, perdas por morte, acidentes e outros.

Na FASE DOIS, o autor propõem os procedimentos a serem tomados frente à incidência de Abuso Sexual Incestuoso. As intervenções possíveis foram discutidas no capítulo referente às Intervenções Terapêuticas, possibilitando que a ênfase recaísse sobre o tratamento do agressor. Enfatiza-se que este capítulo prioriza a análise do silêncio imposto à criança-ferida e sua família, acrescido dos meios de dissimulação e das possibilidades de resgate deste segredo.

Caberia enfatizar que a FASE das intervenções, no que tange à Síndrome do Silêncio, traz um perigo potencial, aparentemente paradoxal, ou seja, no momento em que mais se declara o abuso, mais riscos os envolvidos correm de querer novamente encobri-lo. Na prática psicoterapêutica, observa-se tanto em crianças como em adultos, a tendência após a revelação do abuso, atual ou passado, de novamente remetê-lo ao esquecimento, ocorrendo uma movimentação familiar inconsciente de não se falar mais sobre o assunto, uma vez que ele “já está resolvido”.

Este retorno da Síndrome do Silêncio, traz novamente para a família, a confortável sensação de que nada ocorreu e que o mundo continua seguro. A reincidência do silêncio, agora ilusoriamente consciente, remete o abuso para a sombra e uma vez que este denuncia que o problema “não está resolvido”, o potencial de repetição, logo de perpetuação permanece vivo, colocando em risco às novas crianças que adentrarem nesta família.

A reativação da Síndrome do Silêncio constitui uma nova traição para a vítima, que muitas vezes passa a ser desprezada, por ter abalado a tranquilidade familiar com algo que não existiu. Ou ainda, corre o risco de novamente ser abusada, pelo próprio agressor ou por outro, uma vez que as medidas de cuidado e proteção passam a se tornar mais flexíveis e permissivas, já que o motivo para as mesmas foi esquecido, ou melhor, silenciado.

Portanto, é de fundamental importância que o ato abusivo seja nomeado, criado e mantido como realidade. Somente desta forma, o abuso será validado, prevenido e curado na psique e no universo dos envolvidos. T. FURNISS162, propõe que este processo seja realizado em três etapas:

A primeira refere-se ao nomear da realidade abusiva, fundamental para que se crie por intermédio das palavras o próprio ato. Nas palavras do autor163:

                [Nomear o abuso em voz alta tem, para os profissionais, o efeito, às vezes surpreendente, de que a pessoa que pronuncia as palavras passa a ser vista como a pessoa que cria o abuso. Esse processo explica o extraordinário fenômeno dos profissionais que realizam uma primeira entrevista familiar, em casos legalmente bem estabelecidos de abuso sexual da criança, e que se defrontam com uma família cujos membros continuam ferozmente tentando evitar usar as palavras para nomear o abuso. A primeira pessoa, e frequentemente é o profissional, que usa linguagem sexual e nomeia o abuso, passa a receber a culpa pela crise familiar e serve de bode expiatório para ela…como se a pessoa que quebrou o segredo familiar fosse, na verdade, a pessoa que cometeu e é responsável pelo abuso.]

            A criação do abuso por intermédio das palavras, ditas pelo agressor ou por outros membros da família, é fundamental para que a criança-ferida crie a realidade psicológica do abuso. Conforme foi visto anteriormente, os manejos dissimuladores do ato abusivo, deixam a criança confusa acerca da própria existência do abuso, não importando a idade cronológica que tenha esta criança-ferida, conforme delata T. FURNISS164:

            [É surpreendente que até mesmo adultos de 60 e 70 anos de idade falem sobre a confusão a respeito daquilo que realmente aconteceu no abuso, dizendo, ‘se ao menos uma vez na vida eu pudesse ter ouvido dele por que ele fez aquilo comigo’, geralmente acrescentando a típica declaração das crianças que sofreram abuso sexual ‘e o que havia de errado comigo para isso me acontecer?’] As dúvidas acerca da própria vitimização e das razões que levaram a isto, propiciam o constelar do Complexo do Bode Expiatório, com suas sequelas e potencial para novas vitimizações.

            Este compartilhar do segredo com a família, nomeando e criando o abuso, torna-se mais difícil no caso da criança-adulto-ferida, nos quais pelo tempo transcorrido da infância à vida adulta, muitas das pessoas envolvidas podem estar mortas, tornando impossível que as lembranças do abuso sejam validadas. Em função da distância temporal, os familiares (irmãos)encontram-se envolvidos em suas novas famílias, fazendo o possível para manter a impecabilidade de sua infância, enquanto a criança-adulto-ferida encontra-se atada a sua família de origem, triste fator que gera uma profunda sensação de solidão, uma vez que somente a ela interessa o resgate de sua história de dor. A partir das reflexões realizadas, sabe-se que as novas famílias constituídas trazem no seu âmago o mesmo potencial de vitimizações, mas sabe-se também, que devido ao longo processo de ocultação, os responsáveis por estas novas famílias temem a denúncia da verdade de sua família de origem, optando por conservarem a sombra familiar.

Para prevenir estas tragédias sucessivas, faz-se absolutamente necessário o compartilhar, o denunciar e o falar das dores, relatá-las e conta-las até que a ferida cicatrize, até que o sangramento se esgote. Para tanto, um trabalho análogo ao processo de “interrogatório traumático” seria de grande valia. Tal processo será discutido em capítulo procedente, no qual será enfatizado os traumas de espancamentos e maus tratos infantis, que em sua essência pouco difere do trauma do abuso por agressão repleta de ameaças e medos.

Na FASE TRÊS, o autor comenta sobre a necessidade do uso adequado de diferentes abordagens terapêuticas, visando o tratamento de todos os envolvidos, direta ou indiretamente, com o Abuso Sexual Incestuoso. Esta fase constitui a grande viagem que está fadado a realizar. Pra tanto os capítulos que seguem, retratarão diferentes estações emocionais e níveis de profundidade que a Alma pode atingir no seu caminhar em busca de si mesma.

Antes no entanto, ainda em se tratando de segredo, faz-se oportuno analisar as formas que as denúncias veladas das crianças podem adquirir, ou seja, analisar a sintomatologia da criança-ferida vitimizada. A sintomatologia que a criança-adulto-ferida vitimizada apresenta, foi e está sendo tratada no decorrer de toda pesquisa, uma vez que o adulto ferido foi considerado um sobrevivente que traz consigo uma série de sequelas, as quais foram descritas nos capítulos precedentes e serão “curadas” nos capítulos que prosseguem. Caberia ainda, analisar que alguns dos sinais de alerta que serão apresentados no tocante às crianças-feridas em processo de vitimização, permanecem os mesmos nas crianças-adulto-feridas sobreviventes.

  1. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA. São Paulo. Robe. 1995. P. 49.
  2. ABUSO SEXUAL DA CRIANÇA. Porto Alegre. Artes Médicas. 1993. Pp. 31-4.
  3. REVISTA VEJA. São Paulo. Abril. Janeiro. 1996. Ano 29.
  4. ABUSO SEXUAL DA CRIANÇA. Porto Alegre. Artes Médicas. 1993. P. 32.
  5. Op. Cit. p. 320.
  6. Op. Cit. p. 43
  7. INCESTO: compreensão e tratamento, São Paulo. Roca. 1984. Pp. 104-8.
  8. CHILDSEXUAL ABUSE. New York. Columbia University. Press. 1988. P. 17.
  9. ABUSO SEXUAL DA CRIANÇA. Porto Alegre. Artes Médicas. 1993. P. 45
  10. Op. Cit. p. 46
  11. Idem. Ibdem.
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