Capítulo XX

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

CAPÍTULO XX

O EXÍLIO INEVITÁVEL

            A criança-ferida como Azazel, o Errante, agora consciente e abençoado em “O Patinho Feio”. Este capítulo trata do exílio inconsciente que se transforma em exílio consciente, após uma longa jornada interior com sucessivas buscas malogradas de acolhimento. Como o infante que encontrou a hera da princesa em seus próprios cabelos, assim a criança-ferida exilada encontrou seu nicho.

À seguir, H. C. ANDERSEN in C. P. ÉSTES ²51, apresenta “O Patinho Feio”:

            [Já estava quase na época da colheita. As velhas faziam bonecas verdes com palha do milho. Os velhos remendavam cobertores. As moças bordavam flores de um vermelho vivo nos seus vestidos brancos. Os rapazes cantavam enquanto empilhavam o feno dourado. As mulheres tricotavam blusões ásperos para o inverno que viria. Os homens ajudavam a colher, arrancar, cortar e ceifar os frutos que os campos haviam produzido. O vento apenas começava a soltar as folhas um pouco mais, e mais um pouco a cada dia que passava. E lá para os lados do rio, uma pata chocava uma ninhada de ovos.

            Tudo estava indo como deveria para essa mãe pata e, afinal, um a um, os ovos começaram a tremer e sacudir até que as cascas racharam e deles saíram cambaleantes seus novos filhotes. Restava, porém, um ovo, um ovo muito grande Ele estava ali parado como uma pedra.

            Uma velha pata veio visitar, e a mãe pata exibiu seus filhotes:

            – Eles não são lindos? –  gabou-se ela. Mas o ovo ainda sem rachar chamou a atenção da velha pata, e esta tentou dissuadir a mãe de continuar a chocar aquele ovo.

            – É um ovo de peru – exclamou a velha pata. Absolutamente não serve como ovo. Não se pode levar um peru para dentro d’água, você sabia? – Ela sabia, porque já havia tentado.

             A mãe pata, no entanto, achou que estava chocando há tanto tempo que mais um pouquinho não ia fazer mal.

             Não estou preocupada com isso – disse ela – Mas você sabia que o safado do pai desses patinhos ainda não veio me visitar uma vez sequer?

             Afinal, o ovo grande começou a estremecer e a rolar. Acabou quebrando, e dele saiu uma criatura grande e desajeitada. Sua pele era marcada por veias sinuosas azuis e vermelhas. Seus pés eram de um roxo claro. Seus olhos, de um rosa transparente.

             A mãe pata inclinou a cabeça, esticou o pescoço e o contemplou. Não pôde se conter: ele era feio mesmo. ‘Talvez seja mesmo um peru’, preocupou-se ela. Contudo, quando o patinho feio entrou na água acompanhando os outros filhotes, a mãe pata viu que ele nadava muito bem. ‘É, ele é dos meus, apesar de ter essa aparência tão estranha. No fundo, porém, do ângulo certo…ele é quase bonito.’

             E assim ela o apresentou às outras criaturas do quintal da fazenda, mas, antes que percebesse, outro pato atravessou o quintal a toda e bicou o patinho feio bem no pescoço.

             – Pare com isso! – gritou a mãe pata.

             – Ora, ele é tão feio e esquisito. Ele precisa que o maltratem – retrucou o valentão.

             – Oh, mais uma ninhada! Como se já não tivéssemos bocas demais a alimentar! – exclamou a pata rainha com o trapo vermelho na perna. – E aquele lá, aquela grandão e feio. Bem, aquilo sem dúvida é um engano.

             – Ele não é um engano – disse a mãe pata. – Ele vai ser muito forte. Foi só que ele ficou tempo demais dentro do ovo e ainda está meio deformado. Mas ele vai se recuperar. Vocês vão ver – Ela limpou com o bico as penas do patinho feio e lambeu seu topete.

               Os outros, no entanto, faziam tudo o que podiam para importunar o patinho feio. Voavam para atacá-lo, bicavam-no e gritavam com ele. E à medida que o tempo passava, eles o atormentavam cada vez mais. Ele se escondia, se desviava, saía em ziguezague, mas não conseguia escapar. O patinho era a mais infeliz das criaturas.

                A princípio, sua mãe o defendia, mas com o tempo até ela se cansou daquilo tudo.

                – Como eu queria que você fosse embora – exclamou exasperada. E foi assim que o patinho feio fugiu. Com a maior parte das suas penas arrancada e todo enlameado, ele correu e correu até chegar a um pântano. Ali ele se deitou à beira d’água com o pescoço esticado e sorvia um pouco d’água de vez em quando.

                  Dos juncos dois gansos o observavam. Eram jovens e cheios de si.

                  – Ei, você aí, criatura horrorosa – disseram rindo à socapa. – Quer vir conosco até o próximo condado? Há um bando de gansas solteiras por lá, prontas para serem escolhidas.

                   De repente, ecoaram tiros. Os gansos caíram com um baque e a água do pântano ficou vermelha com seu sangue. O patinho feio mergulhou para se abrigar, e por toda a parte só havia tiros, fumaça e cães latindo.

                   Afinal, o pântano ficou tranquilo, e o patinho saiu correndo e voando a maior distância possível. Perto do anoitecer, ele chegou a um pobre casebre. A porta estava pendurada de um barbante, e havia mais fendas do que paredes. Ali vivia uma velha esfarrapada com seu gato desgrenhado e sua galinha vesga. O gato fazia jus a morar com a velha por apanhar camundongos. A galinha, por botar ovos.

                    A velha achou que estava com sorte por ter encontrado um pato. Talvez fosse uma pata e também botasse ovos e, se não fosse, podemos mata-lo pra comer. E assim o pato fiou, mas ele era perseguido pelo gato e pela galinha.

                   – Para que você serve se não bota ovos e não sabe apanhar camundongos? – perguntavam-lhe os dois.

                   – O que mais gosto de fazer – disse o patinho com um suspiro – é ficar ‘debaixo’, quer seja debaixo da amplidão azul do céu, quer debaixo do frescor azul da água. – O gato não via nenhum sentido em querer ficar debaixo d’água e criticou o patinho pelos seus sonhos idiotas. A galinha não conseguia ver a graça de ficar com as penas molhadas e também debochou do patinho. No final das contas, ficou claro que aqui também não haveria paz para o patinho, e por isso ele partiu para ver se as coisas podiam ser melhores mais adiante.

                     Ele encontrou por acaso um laguinho e, enquanto estava nadando, foi ficando cada vez mais frio. Um bando de aves passou voando lá em cima, mais lindas que ele já havia visto. Elas gritaram para cumprimentá-lo, e ouvir suas vozes fez com que o coração do patinho saltasse e se apertasse ao mesmo tempo. Ele gritou de volta com uma voz que nunca havia emitido antes. Ele nunca havia visto criaturas mais lindas, e nunca havia se sentido mais desolado.

                    Ele girou e girou na água para observá-las enquanto desapareciam nos céus e depois mergulhou até o fundo do lago e ali se aninhou, trêmulo. Estava fora de si por sentir um amor desesperançado por aqueles enormes pássaros brancos, um amor que ele não conseguia entender.

                      Um vento mais frio começou a soprar e foi ficando cada vez mais forte com o passar dos dias. E a neve caiu sobre o gelo. Os velhos quebravam o gelo nos baldes de leite, e as velhas fiavam até tarde da noite. (…) no lago ali por perto, o patinho precisava nadar cada vez mais rápido em círculos para manter um lugar aberto no gelo.

                     Um dia de manhã, o patinho se descobriu preso no gelo e foi aí que ele sentiu que ia morrer. Dois patos selvagens vieram voando e chegaram escorregando no gelo. Eles observaram o patinho.

                     – Como você é feio – grasnaram – Que pena. É uma tristeza. Não se pode fazer nada por alguém como você. – E saíram voando.

                        Felizmente, um lavrador passou por ali e libertou o patinho quebrando o gelo com seu cajado. Ele levantou o patinho, abrigou-o no casaco e voltou pra casa. Na casa do lavrador, as crianças quiseram pegar o patinho, mas ele teve medo. Voou até os caibros do telhado, fazendo com que toda a poeira caísse na manteiga. De lá de cima, ele mergulhou direto para entro do balde de leite e, quando ia saindo todo molhado e grudento, caiu no barril de farinha de trigo. A mulher do lavrador saiu atrás dele com uma vassoura enquanto as crianças riam a mais não poder.

                       O patinho saiu agitado pela porta do gato e, lá fora afinal, caiu quase morto na neve. Dali, ele se forçou a prosseguir até chegar a mais um lago, a mais uma casa, a outra casa, e o inverno inteiro transcorreu dessa forma, alternando entre a vida e a morte.

                      Mesmo assim, a brisa suave da primavera voltou. As velhas vieram arejar os acolchoados, e os velhos guardaram suas ceroulas compridas. Novos bebês chegavam no meio da noite, enquanto seus pais andavam de um lado para o outro no quintal, debaixo do céu estrelado. Durante o dia, as moças enfiavam narcisos nos cabelos, e os rapazes examinavam os tornozelos femininos. E num lago por ali, a água ficou mais agradável e o patinho feio que nela boiava abriu as asas.

 Como eram grandes e fortes as suas asas. Elas o levaram bem para o alto acima da terra. Dos céus, ele via os pomares com seus mantos brancos, os lavradores arando, os jovens de toda a natureza saindo da casca, tropeçando, zumbindo e nadando.  Também brincando na água do lago havia três cisnes, as mesmas criaturas maravilhosas que ele havia visto no outono; aquelas que lhe haviam causado um aperto tão forte no coração. Ele sentiu um impulso e se unir a elas.

            E se fingirem que gostam de mim, e depois, assim que eu me aproximar, saírem voando às risadas? Pensou o patinho. Ele desceu planando e pousou no lago, com o coração batendo forte.

            Assim que o viram, os cisnes começaram   a nadar na sua direção, estou a ponto de encontrar meu fim, pensou o patinho, mas, se tenho de ser morto, melhor que seja por essas lindas criaturas do que pela mão de caçadores, donas-de-casa ou longos invernos. E abaixou a cabeça para aguardar os golpes.

Que surpresa! Na imagem na água ele viu um cisne em um traje a rigor: plumagem branca como a neve, olhos escuros e tudo o mais. O patinho feio à princípio não se reconheceu porque era exatamente igual aos belos estranhos, igual àqueles que ele havia admirado de longe.

E acabou se revelando que ele era um deles no final das contas. Seu ovo por acaso havia rolado para um ninho de patos. Ele era um cisne, um cisne magnífico. E pela primeira vez sua própria família se aproximava dele, tocando-o com cuidado e carinho com as pontas das asas. Eles lhe limparam as penas com seus bicos e nadaram muito ao seu redor para cumprimentá-lo.]

Este conto infantil fala das muitas estações do caminhar da criança-ferida rumo a auto-aceitação e ao encontro afetivo com o mundo. A criança-ferida é diferente, “grande” em seu afeto que aos poucos vai sendo destruído pela incompreensão de seu grupo. Pela constância com que é repudiada na sua integridade, acaba por tornar-se um estorvo, desajeitada e feia. Acaba por peregrinar pela vida repetindo sua sina de ser excluída e maltratada. Seus dias são invernais, pelo frio que lhe congela a alma.

A criança-ferida muitas vezes, encontra-se com um lavrador que quer acolhê-la em seu afeto, porém se assusta com o toque e o carinho que desconhece. Atordoada, passa a estragar o universo destes relacionamentos amorosos recém-descobertos, e feito o “patinho mergulha no balde de leite e se lança no barril de farinha de trigo”, tentando escapar daquilo que julga tão ameaçador, sem se dar conta de que “aquilo” se chama amor e que é o calor que precisa.

Defronta-se novamente com o exílio e quando pensa estar quase perecendo, lança mão de suas forças para alcançar um novo lago e uma nova esperança. Exausta a criança-ferida, ainda incrédula, encontra um grupo a pertencer. Ainda desconfiada, ensaia aproximar-se e após muitas mutações interiores, percebe-se “fazendo parte” de um novo mundo, construindo um destino inusitado em sua verdadeira família afetiva. Provavelmente, na família que formará, a partir de sua dor redimida e de sua Alma liberta.

  1. MULHERES QUE CORRREM COM OS LOBOS. Rio de Janeiro. Rocco. 1997. Pp.211-16.
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