Capítulo XVIII

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

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CAPÍTULO XVIII

CONFIAR, ENTREGAR-SE E FLORESCER

Encontrar o outro e encontrar-se

             Uma das sequelas mais pungentes dos abusos na criança-ferida é a perda da confiança nas pessoas, no mundo e na vida. R.KOSCHAR ²²9, descreve como postura típica de sobrevivente o medo das relações, ou seja, [a vítima de abuso tem medo de pessoas confiáveis. Não quer se arriscar a confiar e a sofrer de novo.]

            Como até agora vem sendo descrito, a criança-adulto-ferido constrói inúmeras muralhas para defender-se das outras pessoas, que se lhes são sempre potencialmente perigosas. Teme encontrar-se vulnerável, desarmar-se e entregar-se. Teme a intimidade do corpo e da alma. Conforme descreve STONE & WINKELMAN in J. ABRAMS ²³0:

[É a vulnerabilidade da pessoa que torna a intimidade possível na relação e, inversamente, é essa mesma vulnerabilidade e aparente falta de poder que os “eus” primários protetores mais receiam na relação (…) É a inclusão da vulnerabilidade na relação que permite a intimidade, é o repúdio da mesma que mais tarde destrói a intimidade.]

            Estar disponível enquanto pessoa para receber a vulnerabilidade do outro, requer uma sabedoria interior profundamente desenvolvida. Os seres humanos estão mais habituados a “usarem” a vulnerabilidade, desconhecendo a arte de acolhê-la. Por isso é tão comum as pessoas “fazerem amor” com seus corpos, sem nunca, no entanto, tocarem a intimidade, porque esta implica em compromisso emocional com o outro, recebendo-o na própria vulnerabilidade, ato que se chama confiança. Num mundo tão carente de intimidade, a quem a criança-ferida abusada e desprezada poderia entregar suas dores?

  1. F. EDINGER231, sugere que um dos poucos espaços sagrados capazes de medicar as feridas da alma é o espaço psicoterapêutico. Esclarece que [a palavra grega therapeuein, ‘curar’ significava, originalmente, ‘serviço dos deuses’. Por conseguinte a cura ocorre de início, num contexto sagrado. Psicoterapia significa, em termos essenciais, serviço à psique.]

            A visão sagrada da cura da alma, e do profundo respeito que se deve ter ao tocá-la, é enfatizado por Vi OAKLANDER232:

[Toda vez que uma criança abre seu coração para mim e compartilha essa assombrosa sabedoria geralmente mantida oculta, eu sinto uma profunda reverência.] Reverência é a atitude interior que deve possuir todo aquele que se dispõe à adentrar no universo das dores, das alegrias, dos êxtases humanos.

Reverenciar a sabedoria que a criança-interior oculta, enredada em suas feridas, ou seja, [aquela energia afetiva pulsátil que vibra entre as pessoas quando elas estão verdadeiramente abertas e confiantes.], que só pode ser tocada por meio do encontro com a criança interior, conforme explicam H. STONE & WINKELMAN na citação acima.

Sabedoria que deve nortear o caminho de busca de cada um, como um fio condutor, o fio de Ariadne. J. CAMPBELL233, fala da tarefa do professor que aqui pode igualmente caracterizar a tarefa do terapeuta, tecendo uma analogia como mito de Teseu e Ariadne. Retrata Teseu perdido no labirinto, ávido por encontrar uma saída para o mundo exterior, prometendo amor eterno à Ariadne se esta lhe mostrar o caminho. Ariadne então lhe oferece um fio, com o qual ele mesmo encontrará seu caminho, ao desenrolá-lo à medida que penetra no próprio labirinto. A tarefa do psicoterapeuta como a do professor, é a de possibilitar que o próprio caminhante encontre o seu fio de Ariadne. Nas palavras de J. CAMPBELL234:

  1. ANATOMIA DA PSIQUÊ. São Paulo. Cultrix. s/d. p. 22.
  2. DESCOBRINDO CRIANÇAS. 9ª ed. São Paulo. Summus. 1980. P. 15.
  3. O PODER DO MITO. São Paulo. Patas Athenas. 1990. P. 159.
  4. Op. Cit. p. 161.

[Nós devemos orientar nossos alunos no sentido de desenvolverem as imagens que tem de si mesmos. Aquilo que cada um procura em sua vida nunca existiu antes, em terra ou no mar. É algo que devia provir da potencialidade de experiência exclusiva de cada um, algo que jamais venha a ser experimentado por mais ninguém mais.]

O caráter inusitado dos caminhos, procurou ser mantido na presente pesquisa, ao sugerir diferentes possibilidades de interpretação e tratamento da criança-ferida, ora vendo-a como criança-interior a ser resgatada, como lado sombrio a ser integrado, ora como potencial de destruição, ora como corpo mortificado, ora como bode expiatório. Ad muitas facetas que um mesmo problema pode adquirir e no qual pode (des)enrolar-se. Necessário lembrar, no entanto, que a necessidade de um outro, uma pessoa de confiança sempre se manteve como constante, acompanhando o gestar e o (re)nascer dos crescimentos interiores. Estes “parteiros da Alma” serão os psicoterapeutas, os curandeiros contemporâneos.

Sobre eles muito pode ser falado, porém há um aspecto que precisa ser muito bem compreendido para que adquira a dimensão que lhe é devida. As pessoas somente podem auxiliar as outras a encontrarem o fio de Ariadne, se já encontrou e está trilhando seu próprio labirinto interior. Isto implica que o encontro do terapeuta com o cliente, remeterá ambos a seus labirintos, o que levará tanto o cliente como o terapeuta, à encontrarem percursos inusitados, até então inexplorados, e neste encontro interior e exterior, ambos se transformarão. Sobre esta alquimia psíquica, descreve C.G.JUNG in E. F. EDINGER ²³5.

[As personalidades do médico e do paciente com frequência tem uma importância infinitamente maior, para o resultado do tratamento do que o médico diz e pensa (…) Porque o encontro de duas personalidades é semelhante à mistura de duas diferentes substâncias químicas: se houver alguma combinação, ambas as substâncias se transformam. Em, todo tratamento psicológico efetivo, o médico está fadado a influenciar o paciente; mas essa influência só pode ocorrer se o paciente tiver sobre o médico uma influência semelhante. Não se pode exercer influência se não se for suscetível à influência.]

             A estes humanos e belos processos de transformar e transformar-se em labirintos ou em laboratórios interiores, enriquece A. GUEDES ²³6, ao descrevê-los como arte: [a minha arte é ‘tocar’ as pessoas. ‘Tocar’ pela palavra, gesto afeto, expressão, olhar movimentos, etc., nos seus pontos sensíveis, adormecidos, cristalizados, encantados. Eu consigo ‘tocar’ quando fui ou estou sendo ‘tacada’ por essa mesma pessoa.]

Através deste “tocar” mútuo, o cliente pode encontrar novas alternativas para relacionar-se, vivenciando um clima de segurança. E nesta relação terapêutica descobrir, conforme descreve B. H. P. CARDELHA ²³7 que é possível:

[– Duas pessoas relacionarem-se construtiva e amorosamente, apesar de serem diferentes;

            –  Respeitar e preservar a própria individualidade na construção e no crescimento de um relacionamento;

            –   Duas pessoas confiarem uma na outra e manterem respeito mútuo;

            – Entregar-se, sem que isso signifique submissão ao outro, e sim a possibilidade de encontrá-lo;

– Ser livre e envolver-se com profundidade;

            – Falhar, cometer enganos, e ainda ser amado;

            – Ser o que se e, sendo aceito e valorizado;

            – Receber amor e não ser cobrado;

            – Ser amado e não ter que corresponder às expectativas do outro;

            – Amar e ser amado sem sofrimento;

            – Expressar-se e não sentir-se enfraquecido ou inferiorizado;

            – Sentir-se digno de ser amado;

            – Amar a si mesmo e ao outro;

            – Descobrir e aprender sempre algo novo no relacionamento;

            – Separar-se, diferenciar-se e continuar amando e sendo amado.]

Nesta relação aprende a deixar-se vulnerável e a confiar. Mas o terapeuta precisa estar atento às diferenciadas manobras destrutivas que inevitavelmente o cliente fará uso quando sentir-se ameaçado pela intimidade humana que a terapia começa à desnudar, igualmente, o terapeuta deve estar atento às repercussões psíquicas que o manejo com pessoas profundamente feridas podem suscitar em si mesmo. À seguir, serão apresentadas algumas advertências que os profissionais dispostos a trabalhar com crianças-feridas e crianças-adulto-feridas vítimas expiatórias e suas famílias, devem considerar.

  1. FURNISS ²³8, alerta para o processo de espelhamento e identificação profissional, passível de ocorrer na intervenção terapêutica com famílias feridas abusivas:

[O espelhamento descreve um processo em que diferentes membros de uma rede profissional assumem papéis, no relacionamento com os colegas profissionais, complementares àqueles que os diferentes membros da família têm entre si. A rede profissional representa à dinâmica familiar, por exemplo, apresentando processos de clivagem e fragmentação e refletindo, na rede profissional, a maneira como a família vê a si própria. Determinados membros da família, possuem papéis específicos atribuídos a eles, os quais, via identificação, são espelhados em diferentes membros da rede profissional. Identificações complementares de diferentes profissionais – com diferentes membros da família, e aspectos da vida familiar podem levar a uma situação em que o padrão de relacionamento entre os profissionais represente um padrão espelhado dos relacionamentos familiares, com o resultado de que as ações dos profissionais tornam-se reações à família induzidas pelo processo familiar.]

A identificação do profissional com a criança-ferida pode imobilizar sua atuação terapêutica, ao colocá-lo no mesmo nível de desproteção da criança-ferida, caracterizando uma atuação não-terapêutica. Outros profissionais, em razão de suas demandas psíquicas sombrias, pode identificar-se com o abusador, o cônjuge não protetor ou com qualquer outro elemento da rede familiar. Este processo foi denominado conflito-por-procuração.

Esta advertência referente às identificações que podem surgir por parte dos profissionais, pode ter sua explicação ampliada por S. B. PERERA²³9, que descreve a interação psíquica paciente-terapeuta na relação psicoterapêutica:

[No nível mágico de consciência, o vínculo entre paciente e terapeuta está em constante fluxo. Aqui, as duas partes, coexistem num todo simbiótico e sincrônico – uma ‘participation mystique’ urobórica, pré-verbal, ilimitada e atemporal. Pode não importar muito, em última análise, o local onde se localiza o limite psíquico, contanto que o terapeuta possa encontrar uma orientação pessoal no campo arquetípico da imagem-sentimento. Contanto que possa perceber o papel que está desempenhando e consiga desidentificar-se dele.] E acrescenta a autora240: logo, [os complexos do próprio terapeuta entrarão em ressonância com as sombrias feridas e toxinas-ódio, cobiça e fúria – da psicologia do paciente.]

O contágio psíquico no campo analítico, no tratamento de indivíduos nos quais o complexo do bode expiatório foi constelado, pode induzir o terapeuta à identificar-se com um dos aspectos polarizados do complexo, ou seja, com ego-vítima ou com o acusador, comprometendo o discernimento clínico.

A interpenetração psíquica, esta zona indiferenciada que consiste a relação no nível mágico, justifica a imperiosa necessidade do terapeuta de reconhecer suas porções sombrias e tentar integrá-las. E como este lapidar psíquico consiste num trabalho que se desenrola por toda a vida, o terapeuta deve ao menos, ter consciência de seus impulsos destrutivos, ao se propor a curar as feridas do outro.

A escuta e a disponibilidade para acolher determinadas dores dos pacientes, dependem portanto, da própria disponibilidade psíquica do terapeuta para ouvir, conforme foi discutido em capítulo anterior, quanto à escuta do A.S.I.: a criança-ferida e sua família precisam falar sobre o abuso, para poder ouvir e assimilar este abuso, necessitando de uma escuta verdadeira. B. H. P. CARDELHA²4¹ sugere que o terapeuta empenhado em desenvolver esta qualidade do ouvir, reflita sore os dizeres de Láo Tsé, o grande sábio chinês, que assim descreve o processo da escuta: [é como se ele ouvisse e este ouvir nos envolve em tal silêncio, que por fim começamos a ouvir o significado de nosso próprio ser.]

Frente à todas estas advertências, L. BONAVENTURE²4², alerta que, apesar dos riscos que o processo terapêutico apresenta, há um mistério maior que traz um sentido muito mais profundo a todos estes empreendimentos humanos:

[O ser humano permanece um mistério, assim como o encontro entre duas pessoas é um mistério ainda maior, o Mistério do Amor. E cada novo encontro me faz relembrar isso de alguma maneira. Sem dúvida, não se pode ignorar o jogo das projeções e a importância da contratransferência, mas existe algo maior nesses encontros…O amor é o evocador, é o princípio de todo trabalho terapêutico. Sem ele nada acontece na vida. É ele que favorece a abertura, o diálogo, a vida, a verdade (…) Até aprendemos técnicas para nos protegermos. No entanto, só o amor pode curar o amor ferido.]        O acolhimento amoroso da vulnerabilidade alheia e a busca da intimidade, no universo do amor, são resgates necessários à todas as relações entre pessoas, principalmente dentro das famílias. A maldição familiar, é o retrato da falta de respeito, e para curá-la, as famílias deveriam tornar-se um recurso de crescimento e transformações rumo à totalidade. Este ideal somente será possível dentro de uma nova proposta de casamento, que o traga como um [espaço adequado para que duas pessoas se confrontem com seus opostos, com suas diferenças, com as áreas obscuras e sombrias de sua personalidade. Nesse encontro é vivido o paradigma simbólico do Opus Alquímico, do processo de transformação psíquica, que leva a novas atitudes em consequência da união dos opostos, a coniunctio alquímica. O casamento é, portanto, o símbolo adequado do processo de individuação, descrito por C. G. JUNG.]²4³.

Este encontro humano inteiro e honesto, construiria um ambiente saudável pra receber seus novos integrantes. Uma família constituída nestas bases, não teria necessidade de vitimar crianças para aplacar feridas.

  1. REVISTA VEJA. São Paulo. Abril. Janeiro. 1996. Ano 29. P. 61
  2. O REENCONTRO DA CRIANÇA INTERIOR. São Paulo. Cultrix. 1994. P. 169
  3. ANATOMIA DA PSIQUÊ. São Paulo. Cultrix. s/d. p. 22.
  4. DESCOBRINDO CRIANÇAS. 9ª ed. São Paulo. Summus. 1980. P. 15.
  5. O PODER DO MITO. São Paulo. Patas Athenas. 1990. P. 159.
  6. Op. Cit. p. 161.
  7. ANATOMIA DA PSIQUE. São Paulo. Cultrix. s/d. p. 244
  8. O AMOR NA RELAÇÃO TERAPÊUTICA. São Paulo. Summus. 1994. P. 56
  9. Op. Cit. P. 69
  10. ABUSO SEXUAL DA CRIANÇA. Porto Alegre. Artes Médicas. 1993. P. 82
  11. COMPLEXO DE BODE EXPIATÓRIO. São Paulo. Cultrix. 1991. P. 60
  12. Op. Cit. P. 69.
  13. O AMOR NA RELAÇÃO TERAPÊUTICA. São Paulo. Summus. 1994. P. 62.
  14. SER TERAPEUTA. São Paulo. Summus. 1985. P. 58.
  15. GOTTLIEB, D. & CLAFIN, E. ASSUNTOS DE FAMÍLIA. São Paulo. Saraiva. 1993. P. 145.
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