Capítulo XIV

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

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CAPÍTULO XIV

O DESPERTAR CORPORAL

O presente capítulo tratará da libertação da criança-ferida, na qual respiração, movimento, sensações e prazer realizarão a dança da liberdade na Alma ferida. O desabrochar destas vivências do corpo ampliarão a consciência e esta consciência desperta trará as muitas emoções represadas, então o amor e ódio intensamente vividos, abrirão as portas para a vida.

Muitas já foi discutido acerca da inevitável perda de contato com o corpo, que se dá em decorrência dos processos de vitimizações por abusos corporais, vide o capítulo sobre o desenvolvimento psicossomático sombrio da criança-ferida. Caberia ainda, relembrar que, devido ao constelar do complexo do bode expiatório, igualmente se dá uma intensificação das dissociações corporais que necessitam ser integradas, conforme alerta S. B. PERERA173: [Em razão de a identidade consciente estar fragmentada e dissociada entre eus parciais ou entre aspectos alternativos do complexo, o indivíduo não consegue recobrar um sentido de totalidade sem recorrer ao ‘self’ latente no nível físico da experiência corporal.] Acrescentando que [será imprescindível, portanto, algum trabalho corporal a fim de restaurar o sentido físico do ‘self’.]

            Para tanto, faz-se necessário esclarecer que este estudo não se deterá na demonstração de técnicas, mas no compromisso de percorrer as diferentes estações corporais que constroem este caminho de retornar para casa, a casa do corpo, aquela que foi invadida, depredada e abusada pelos adultos-feridos com os quais a criança-ferida conviveu e da qual foi exilada. Seu corpo agora, não é mais depositário de dores alheias, mas senfaz santuário no qual as transformações emocionais se processarão em busca de um sentido maior para a própria existência.

A tarefa de libertação inclui algumas metas a serem atingidas, não linearmente é claro, mas de maneira integrada e concomitante. Respirar para entrar em contato com o próprio corpo, talvez seja o portal de entrada para o início desta aventura. A. LOWEN174, ao questionar a dificuldade de respiração das pessoas, demonstra sua relevância na cura da criança-ferida:

[Por que tantas pessoas sentem dificuldade para respirar profundamente e com facilidade? A resposta é que a respiração cria sensações, e elas têm medo de sentir. Têm medo de sentir sua tristeza, sua raiva e suas apreensões. Quando eram crianças seguravam a respiração para não chorar, puxavam o ombro para trás, tensionando o peito para conter a raiva e apertavam a garganta para evitar um grito. O efeito de cada uma dessas manobras é a redução da respiração. Da mesma maneira, a contenção de qualquer sentimento resulta numa inibição da respiração. Mais tarde, já adultos, continuam a inibir a respiração para manter esses sentimentos reprimidos. E, dessa forma, a incapacidade para respirar novamente torna-se o principal obstáculo para se recuperar a saúde emocional.]

            A partir da colocação acima, pode-se supor ou mesmo afirmar que a criança-ferida ou criança-adulto-ferida respiram precariamente. A tensão na garganta em função dos gritos e mesmo das palavras silenciadas pela Síndrome do Segredo, discutam a passagem do ar, reduzem a absorção de oxigênio e diminuem o nível energético do organismo. Levar tais pacientes a respirar é tarefa árdua, uma vez que ao serem despertadas algumas sensações corporais adormecidas, o pânico torna-se inevitável. A sensação de colapso iminente leva muitos pacientes à reprimirem mais ostensivamente a respiração. Para que esta fase seja transposta, faz-se absolutamente necessário que a criança-ferida já tenha incorporado a crença na sua possibilidade de aguentar e superar o sofrimento. Conforme foi visto anteriormente a criança-ferida vitimizada na qual o complexo do bode expiatório foi constelado, possui precário suporte ao sofrimento, devido aos mecanismos de defesa que erigiu em sua existência.

Logo, esta baixa resistência ao sofrimento demanda um trabalho de confrontações suaves e paulatinas com as dores, tanto do passado como do presente. Aconselha-se que os trabalhos com respiração não sejam extensos e o nível inicial não muito profundo. Jamais esquecer que respiração desencadeia sensações, que são profundamente ameaçadoras e incompreensíveis para pessoas exiladas de seus corpos. A mente não possui ainda referências para decodificá-las, uma vez que a criança-ferida habita o território da inconsciência. Uma inconsciência que domina inclusive a percepção distorcida que possui da realidade, características tanto dos casos de abusos como do complexo do bode expiatório.

Tais dificuldades de inserção no mundo externo e no mundo interno pessoal verdadeiro, levam o paciente a temer com veemência o sentir. Esta ideia adquire fundamentos ns palavras de T. DETHLEFSEN & R, DAHLKE175:

[Os órgãos dos sentidos são os portais de nossa consciência. Através deles estamos ligados ao mundo exterior. Eles são as janelas de nossa alma, através dos quais olhamos para fora a fim de em última análise, vermos a nós mesmos.] O processo de encontrar o mundo exterior para em seguida reencontra-se com o mundo interno, adquire uma significação profunda quando se pensa na criança ferida enredada na Síndrome do Segredo e nos espancamentos domésticos e privados, também silenciados e segredados, uma vez que aciona o mecanismo das dissociações constantes.

A criança ou adulto feridos, tendem à dissociar-se da realidade frente a eventos que le são insuportáveis ou desagradáveis, o que pode acarretar com o passar do tempo um desligamento mais amplo da realidade, seja externa ou interna, o qual não chega a caracterizar-se como uma dissociação patológica, passível de internamentos psiquiátricos, mas que compromete a inserção do indivíduo no mundo. Muitas vezes, para introduzir a pessoa ferida na vida, é preciso iniciar por atividades simples e cotidianas, nas quais o paciente é estimulado à “prestar atenção” ao que está fazendo. Aparentemente simples, tal esforço para estar presente em todos os momentos da vida diária é exaustivo para as pessoas que tendem a “escapar da realidade”.

O trabalho psicoterapêutico portanto, deve mesclar exercícios de respiração, com atividades que conectem o indivíduo ao mundo externo. Este processo, igualmente auxiliará a criança-ferida ou a criança-adulto-ferida a diferenciar-se do meio, logo das projeções que o meio lhes impõe. Faz-se necessário recordar que uma das características das famílias das crianças-feridas-expiatórias, é a não diferenciação emocional entre os membros do grupo familiar, principalmente em relação a criança em questão, totalmente imersa na vida psíquica de seus pais. Seu “self verdadeiro” está enclausurado, seu ego identificado com as projeções que lhes são impostas, logo, é preciso de certa forma, construir um ego identificado com o verdadeiro “self”. Para tanto, faz-se necessário diferenciar o paciente enquanto indivíduo.

Esta ideia de não diferenciação emocional pode ser exemplificada por S. B. PERERA176, quando relata a possível reação de um indivíduo identificado com o complexo do bode expiatório, perante a dor alheia:

[Verifica-se uma tendência à identificação automática, quase imediata, com qualquer sofredor em qualquer situação. Esta identificação, entretanto, pode também evocar o medo da dor por parte do próprio ego-vítima e de sua incapacidade em suportar o caos.] Desta forma, [o sofrimento de quem quer que seja, até mesmo de um animal, pode levar ao pânico generalizado, à fuga ou à raiva.]

            Para romper com este ciclo de projeções e identificações, faz-se necessário enraizar o indivíduo na sua própria realidade e individualidade. Segundo A. LOWEN177: [O corpo de uma pessoa é sua mais imediata realidade e também a ponte que conecta sua realidade interior à realidade do mundo externo.] Para que este enraizamento psíquico/corporal à realidade se efetive, A. LOWEN178, propõe o conceito de “grouding”:

[Estar ‘grounded’ é uma outra maneira de dizer que uma pessoa está com seus pés no chão. Pode-se estender o termo também para significar que a pessoa sabe onde está e portanto sabe quem é. A pessoa ‘grounding’ represente o contato de um indivíduo com as realidades básicas de sua existência.  A pessoa está ‘grounded’ ‘tem o seu lugar’, isto é, ‘alguém’. Num sentido mais amplo, ‘grounding’ representa o contato de um indivíduo com as realidades básicas da existência. A pessoa está firmemente plantada na terra, identificada com seu corpo, ciente de sua sexualidade e orientada para o prazer. Estas qualidades faltam à pessoa que está ‘suspensa no ar’ ou na sua cabeça, em vez de estar em cima dos próprios pés.]

            Esta reinserção na realidade corporal, pode permitir às crianças-feridas identificadas com o bode expiatório, auto-afirmarem sua existência, bem como, legitimarem a necessidade de satisfação de suas carências, dois aspectos negligenciados em função da dinâmica vitimatória do complexo, conforme foi visto na discussão acerca da estruturação egóica do bode-expiatório. O desenvolvimento destes recursos psíquicos possibilitaram ao indivíduo perceber suas necessidades, diferenciando-as da dos outros, garantindo desta forma, as crianças-feridas e adultos feridos, o direito de defender-se dos abusos que porventura outras pessoas ainda venham a querer impor-lhes.

No “grounding”, ao mesmo tempo em que a pessoa prende-se ao chão, ela ganha mobilidade para mover-se pela vida com segurança. O movimento, portanto, é outro promotor de liberdade para a criança-ferida e adulto-ferida. O movimento possui direta relação com as emoções, conorme enfatiza A. LOWEN179: [a palavra emoção significa movimento externo, para fora ou de fora. A emoção pode ser definida como o movimento emergente de um estado de excitamento de prazer (emoções de bem estar) ou dor (emoções de emergências.]

            As emoções das pessoas feridas encontram-se cristalizadas, enclausuradas, gerando todo um potencial de auto e hetero destrutividades, conforme foi visto nos Mecanismos de Destruição, frutos de uma contenção e má circulação energética. Para libertá-las, é preciso percorrer um longo caminho, uma sucessão de camadas, que ao fim levam a emoção humana máxima que é a experiência do amor. Reich propõe, e será discutido posteriormente, que talvez esteja neste caminhar rumo ao amor, a possibilidade de cura da sociedade. À seguir, será o discutido o percurso a ser seguido rumo às emoções, e poderá ser observado que neste processo, o “reflexo dos susto” e os mecanismos de destruição vão sendo gradativamente desativados.

LOWEN180, propõe quatro camadas a serem trabalhadas psicoterapêuticamente:

1)Camada do ego: consiste na camada mais aparente da personalidade, contendo as defesas psíquicas. O autor cita, o que chamou de defesas típicas do ego: negar, desconfiar, culpar, projetar, racionalizar e intelectualizar.

No universo das crianças-feridas-expiatórias, muitas destas defesas são acionadas, conforme foi visto em capítulos precedentes. A negação do abuso, podendo gerar dissociações. A desconfiança generalizada das vítimas e a desconfiança do agressor/perseguidor projetada em cada atitude da criança vitimizada. A culpa que permeia as relações familiares.

As racionalizações e intelectualizações acerca do quão necessárias são as surras, espancamentos mesmo, para bem educar as crianças. Acrescentam-se a estas tantas outras defesas, características das vítimas expiatórias, vingança fria, inocente hostilidade, auto-afirmação rancorosa, auto-afirmação auto-punitiva, e outras. O suporte energético para tais manobras psíquicas, encontram-se na camada seguinte.

2)Camada Muscular: nas alavras de A. LOWEN181:

[Onde se encontram as tensões musculares crônicas suportivas e justificadoras das defesas do ego, protege, ao mesmo tempo, a pessoa contra a camada subjacente dos sentimentos e sensações reprimidas, que não ousa expressar.]

Nesta camada estaria localizado o mecanismo do Reflexo do Susto, apresentado anteriormente.

3)Camada Emocional: inclui as emoções reprimidas de raiva, pânico ou terror, desespero, tristeza e dor.

  1. BIOENERGÉTICA. São Paulo. 1982. pp. 105-8.
  2. BIOENERGÉTICA. São Paulo. Summus. 1974. P. 105.

4)Centro ou coração: emergem os sentimentos de amor e ser amado. O autor182 propõe o seguinte diagrama explicativo:

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LOWEN adverte que é imprescindível o trabalho com as quatro camadas, uma vez que todas contém conteúdos psíquicos a serem libertados e transformados em instrumento de crescimento e evolução, rumo à totalidade.

O retorno da dor original, bem como, aos conflitos da família original, foram alguns passos sugeridos por Bradshaw, quando da apresentação de seu “movimento para recuperação do alcoolismo”, aqui utilizado para a recuperação da criança-adulto-ferida agressora, apresentada no capítulo. Retornar as feridas primeiras libertar-se é a lei da cura. Somente enfrentando a rejeição, a humilhação e a dor sentida, impressa na inconsciência da infância, é que se pode transformá-la, transformando o indivíduo em um ser capaz de ver a si próprio, destituído das marcas que lhe impuseram o medo e a vergonha.

Readquirir a confiança na vida, significa restituir a confiança em si próprio, é estar “grounding”, tarefa difícil àqueles indivíduos feridos fadados a defenderem-se de seus próprios sentimentos. Frente a tarefa tão delicada, é imprescindível que o indivíduo aceite o desafio de confrontar a própria morte, assegurando-se no entanto, que apesar da dor sentida, existe a possibilidade da sobrevivência. Para quem já sobreviveu duramente uma vez, é natural que tenha medo de correr riscos, conforme discorre A. LOWEN138:

[O desespero (…) não pode ser superado enquanto o indivíduo não tiver assegurada a sua habilidade de sobreviver. Isto significa que ele precisa mergulhar nas profundezas do seu desespero e aceitar a sua sorte (…) após terem descoberto que são capazes de sobreviver nas situações mais desesperadoras possíveis, eles ousam então confrontar a realidade; eles ousam aceitar o seu desejo de intimidade física. Ao perceberem que não tem mais nada a perder, perdem o medo.]

Cada adentrar em nova camada é uma dor. Mas somente ela pode curar, conduzindo o ser humano ferido para uma vida com coração. RAJNEESH in D. BOADELLA184, enfatiza a interdependência da mente com o corpo, corroborando a importância de tocar o coração, num processo de abandonar reações superficiais do ego, passando pela camada das projeções, identificações e introjeções, dos pecados e culpas, para enfim em contato com aquilo que os budistas chamam de mentalidade aberta, e que para o presente estudo significaria e reencontrar da própria Alma:

[Quando você tem um coração vivo, a qualidade da sua mente também irá mudar. Então você pode se dirigir para a sua mente; pode funcionar através da mente. Mas, então, a mente s tornará apenas um instrumento: você pode usá-la. Assim você não fica obsessivo em relação a ela, pode afastar-se dela sempre que quiser…E outra coisa: você descobrirá que você não é a cabeça e nem o coração, porque pode ir do coração à cabeça, da cabeça ao coração. Então, você sabe que você é outra coisa. Se você permanece na cabeça e nunca vai para outro lugar, passa a se identificar com a cabeça. Você não sabe que é diferente. Este movimento da cabeça para o coração e do coração para a cabeça lhe dará a sensação de ser totalmente diferente. Às vezes você no coração, e, outras vezes, você está na cabeça, mas você não é nem coração, nem cabeça.]

Esta seria sem dúvida a grande libertação, tanto para a criança-ferida e a criança-adulto-ferida do presente trabalho, como para toda a humanidade. Seria o desativar dos controles mentais e corporais que aprisionam a Alma dos seres humanos. Seria ainda, a integração dos opostos, que LOWEN in D. BOADELLA185, descreveu como o movimento pulsante da energia vital no corpo:

            [A vida humana pulsa entre seus dois polos, um localizado na extremidade superior do corpo e o outro na extremidade inferior. Podemos acompanhar o movimento para cima com um alongamento na direção do céu, e o movimento para baixo como uma escavação na terra. Podemos comparar a extremidade da cabeça com os galhos e folhas de uma árvore, e a extremidade inferior com suas raízes. Como o movimento para cima se dá na direção da luz, e o movimento para baixo, na direção da escuridão, podemos relacionar a extremidade da cabeça com a consciência e a extremidade inferior com o inconsciente.]

            Este movimento pulsante de energia vital, tocando a luz e a escuridão com igual intimidade, e tendo o corpo um coração vivo e dinâmico como foi proposto por Rajneesh, não teria mais a humanidade que produzir bodes expiatórios e vítimas, uma vez que luz e sombra comungaria da mesma sacralidade. À seguir, confrontações diretas das sombras do medos serão discutidas.

  1. O COMPLEXO DO BODE-EXPIATÓRIO. São Paulo. Cultrix. 1919. P. 62.
  2. PRAZER. São Paulo. Summus. 1984. p. 33.
  3. A DOENÇA COMO CAMINHO. São Paulo. Cultrix. 1993. p. 15.
  4. O COMPLEXO DO BODE EXPIATÓRIO. São Paulo. Cultrix. 1991. p. 64.
  5. O CORPO EM TERAPIA. São Paulo. Summus. 1977. p. 324.
  6. EXERCÍCIOS DE BIOENERGÉTICA. São Paulo. Ágora. 1985. p. 28.
  7. PRAZER. São Paulo. Summus. 1984. p. 75.
  8. BIOENERGÉTICA. São Paulo. 1982. pp. 105-8.
  9. BIOENERGÉTICA. São Paulo. Summus. 1974. P. 105.
  10. Op. Cit. p.
  11. MEDO DA VISTA. São Paulo. Summus. 1986. p. 104.
  12. CORRENTES DA VIDA. São Paulo. Summus. 1992. P. 150.
  13. Op. Cit. p. 145.
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