Capítulo XI

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

CAPÍTULO XI

INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS NOS

CASOS DE ABUSO

Caberia novamente elucidar que o presente estudo tem o objetivo de trabalhar acerca do manejo terapêutico das crianças-adulto-feridas por abusos, sejam físicos ou sexuais, que chegam à psicoterapia tardiamente, isto é, quando os abusos já cessaram concretamente e cuja existência permanece viva, soterrada nas profundezas do inconsciente. No entanto, uma reflexão acerca de abusos infantis não pode furtar-se da discussão sobre as possíveis intervenções a serem realizadas caso existam crianças sendo abusadas no presente. Tam descompromisso seria uma traição inclusive para as crianças-adulto-feridas que alegam e denunciam a dor que sentem por não terem sido socorridas na infância, durante os momentos de vitimização. A apresentação de tais manejos terapêuticos igualmente demonstram alguns procedimentos que se faze necessários também quando do atendimento das crianças-adulto-feridas.

  1. FURNISS141, apresenta três tipos básicos de intervenções em casos de A. S. I., as quais trazem em seu bojo a concepção de vítima e de agressor que os profissionais postulam:

1) INTERVENÇÃO PUNITIVA PRIMÁRIA – I. P. P.

                        Consiste em qualquer tipo de intervenção, por qualquer profissional, que tenha como alvo a pessoa que abusa. Ao punir especificamente o perpetrador, esta intervenção demonstra estar baseada numa explicação monocausal do abuso, restringindo o ato abusivo à duas pessoas, vítima e agressor, excluindo o processo interacional da família de qualquer responsabilidade e participação.

Poder-se-ia supor que neste manejo, haveria a “vingança” contra o agressor. Vingança na qual a própria criança-ferida passa a ser ainda mais prejudicada, uma vez que a existência do apego em relação ao agressor está sendo desconsiderada, conforme esclarece o autor142:

[Não menos importante e contrariamente à crença popular, a maioria das crianças que sofreram abuso sexual não quer perder seus pais pela prisão ou divórcio. Elas querem muito um pai, mas um pai que não abusa. Uma abordagem punitiva primária em relação às pessoas que abusam é portanto um forte fator externo para que as crianças mantenham segredo e não revelem.]

            Observa-se nas crianças-adulto-feridas, igual anseio de preservar o pai/mãe abusadores. Muitas vezes, o paciente evita confrontar-se com esta verdade, na sua memória projetando o abuso num desconhecido. Este tipo de intervenção igualmente, gera muita culpa na criança-ferida acusada, muitas vezes, de ter destruído a família, provocando o afastamento de um dos genitores.

2) INTERVENÇÃO PRIMÁRIA PROTETORA DA CRIANÇA – I.P.C.

            Inclui todas as formas de intervenções em que a criança é o alvo da ação direta, colocando-a como vítima.

Neste tipo de intervenção, os profissionais (assistentes sociais, psicólogos, policiais e outros) tendem a atuar como pais protetores, em contraposição com os ditos pais piores, os verdadeiros pais da criança. Esta manobra interventiva concebe uma explicação bicausal do abuso sexual, como fracasso dos pais, movendo-se em direção à um entendimento do abuso com enfoque no sistema familiar.

Esta intervenção gera outras vitimizações à criança-ferida, com a sua remoção da família, com a perda de figuras afetivas importantes na vida da criança, com a concomitante separação da mãe, dos irmãos, amigos, escola e meio social. Esta modalidade de intervenção leva a criança-ferida à constelar o Complexo do Bode Expiatório, segundo alega T. FURNISS143:

            [Para os membros da família que permanecem em casa, a remoção da criança é facilmente interpretada como a expulsão do núcleo de maldade moral da família. A criança é cortada da família como um ‘câncer sexual’ ou serve de bode expiatório como mentirosa. Ou, como uma colocou: ‘Ela sempre foi uma puta sexy.’]

            Enquanto a criança-ferida assume esta função de bode expiatório, a família novamente encontra-se isenta de enfrentar os conflitos e problemas emociossexuais. Este estigma pode ser levado à lares protetores ou adotivos, nos quais a criança é vista com desconfiança. Conforme foi abordado no Capítulo II, com base nas ideias Freudianas, as quais afirmam que a pessoa que transgride um tabu, torna-se o próprio tabu, talvez nesta memória filogenética humana, esteja este registro discriminativo.

Observa-se que muitas crianças-feridas ao se tornarem adultas, exilam-se da família, passando a residir em outros estados ou países, distanciando-se da família de origem. Adotando, muitas vezes, uma vida errante, identificando-se desta forma, com Azazel, o Bode Errante.

3) INTERVENÇÃO TERAPÊUTICA PRIMÁRIA – I. T. P.

            Inclui todas as intervenções que objetivam tratar o trauma individual e modificar os relacionamentos familiares. Esta modalidade de intervenção, concentra-se na dinâmica fundamental que levou ao abuso e o manteve. Não se dirige contra um membro específico da família, mas dirige-se primariamente aos aspectos circulares e relacionais do abuso sexual incestuoso.

Durante o tratamento, alguns problemas importantes emergem na dinâmica familiar, especificamente no relacionamento entre a mãe, o pai e a criança, conforme elucida T. FURNISS144:

                [1) O conflito emociossexual e sexual entre os pais;

            2) O fracasso materno em evitar o abuso e proteger a criança;

            3) A competição entre a mãe e a criança como parceira emocional do pai.]

Os conflitos emociossexuais e sexual entre pais, tornados sombrios ou não confrontáveis, são projetados na criança-ferida, constelando o bode-expiatório, conforme já foi anteriormente descrito.

O que concerne ao item 2, da impossibilidade da mãe em proteger a criança-ferida, necessita maiores informações, uma vez que tais dificuldades evidenciam os conflitos familiares intergeracionais, confirmando o quão expressiva é a Maldição Familiar, caracterizada por vitimizações sucessivas. No caso da mãe de crianças que sofreram abuso sexual, tendo sofrido elas mesmas abuso sexual, torna-se mais complexa a intervenção terapêutica, uma vez que precisa ser extensiva às duas crianças-feridas envolvidas, ou seja, a criança-ferida, filha recentemente abusada, e a criança-interior-ferida da mãe. O manejo terapêutico deve ser conduzido de forma tal, que não confunda a criança abusada com a mulher que foi sexualmente abusada, visando não reforçar a dinâmica da não diferenciação emocional e de papéis, característica das famílias que abusam e “imolam” seus membros.

Esta mãe pode ser compelida à buscar auxílio nos momentos de crise, tornando-se aos poucos menos empenhada em colaborar no tratamento, quando percebe que suas próprias dores estão em jogo. A ameaça a seu segredo inconsciente, o próprio abuso sofrido, pode levá-la a atitudes crescentemente hostis para com a criança-ferida abusada que não foi capaz de proteger e que denuncia sua própria história.

Outro aspecto que evidencia projeções maternas sobre a criança-ferida abusada da filha, se dá na Síndrome-Munchausen-por-procuração nas mães que sofreram abuso sexual, termo apresentado por T. FURNISS145:

[Eu atendi algumas mães que estavam muito preocupadas e que alegaram que seus filhos haviam sido sexualmente abusados. Elas eram extremamente protetoras e apresentavam-se imediata e firmemente com claras alegações de abuso sexual da criança. No entanto, uma precisa e cuidadosa avaliação dos fatos e circunstâncias não parecia aprovar as alegações. Nem um desses casos era parte de conflitos de separação ou divórcio. Em cada caso, descobriu-se mais tarde que as próprias mães haviam sofrido abuso sexual quando crianças. As alegações eram parte de uma Síndrome-Munchausen-por-procuração, em que as mães projetavam sua própria experiência de abuso sexual em seus filhos. Sob falsas alegações, elas buscavam ajuda para a criança dentro delas.]

Este caso não deixa de acarretar sequelas à vida emocional da criança-ferida, que não foi diretamente abusada sexualmente, mas que encontra-se enredada na vitimização anterior da mãe. O autor acrescenta às complexidades acima descritas, a quase inevitável competição entre a mãe e a criança, como parceiras emocionais do pai, explicitado no item 3. Tal competição gera a inflação de ego na criança-ferida, conforme abordado anteriormente, estado no qual a criança se sente “especial” em relação ao outros membros da família, inclusive em relação a própria mãe e, pior consequência, uma hostilidade é desencadeada entre ambas.

A referida inflação de ego, se faz presente, igualmente, quando na criança-ferida é constelado o Complexo do Bode Expiatório, em seu aspecto Azazel, O imolado, isto é, a criança se sente poderosa, a vítima-sacrificial, cujo abuso “salva” o grupo familiar.

Caberia enfatizar que o abuso sexual incestuoso, até o presente momento, está sendo tratado enquanto Síndrome de Adição e de Segredo, isto é, como um comportamento no qual o abusador é compelido a agir sem possuir condições de controle. Compulsão análoga a qualquer outro tipo de comportamento aditivo, seja álcool, drogas e/ou jogos de azar, na qual a “droga” é uma criança estruturalmente dependente para aplacar a compulsão da pessoa abusiva dependente.

  1. FURNISS146, propõe uma analogia entre a Síndrome de Adição no A. S. I., e o modelo de funcionamento da adição em outros tipos de drogas e compulsões:

[1) As pessoas que abusam sexualmente de crianças sabem que o abuso é errado e que constitui um crime;

            2) A pessoa que abusa sexualmente sabe que o abuso é prejudicial à criança. Apesar disso o abuso acontece;

3) O abuso sexual, como outras adições, não cria primariamente uma experiência prazerosa, mas serve para alívio de tensão;

            4) O processo é conduzido pela compulsão à repetição;

            5) Os sentimentos de culpa e o conhecimento de estar prejudicando a criança podem levar à tentativas de parar o abuso;

            6) O aspecto sexual egossintônico do abuso sexual, dá a pessoa que abusa a ‘excitação’ que constitui o elemento aditivo central;

            7) A gratificação sexual do ato sexual ajuda a evitação da realidade e apoia uma baixa tolerância à frustração, mecanismos frágeis de manejo e funções de ego frágeis;

            8) Os aspectos egossintônicos e sexualmente excitantes do abuso sexual da criança e o subsequente alívio de tensão criam dependência  psicológica;

            9) A pessoa que abusa sexualmente tende à negar a dependência, para ela própria e para o mundo externo, independentemente de ameaças legais;

            19) A tentativa de parar o abuso pode levar à sintomas de abstinência, tais como ansiedade, irritabilidade, agitação e outros sintomas.]

            O caráter aditivo, em função de tensões acumuladas que necessitam ser descarregadas, encontra-se presente, igualmente, nos casos de espancamentos, os quais servem como mecanismos de liberação das frustrações e pressões sócio-econômico-emocionais, episódios que possibilitam, tanto ao agressor como a toda família, um imediato alívio de tensões, conforme demonstra a história de espancamento do personagem “Zezé”, descrito no capítulo referente aos maus-tratos. A necessidade do abusador para liberar suas tensões, encontra explicação, igualmente, no mecanismo do Reflexo do Susto, anteriormente apresentado, no qual os potenciais energéticos de agressão são desencadeados frente à situações do mundo externo que se apresentam ameaçadoras ou provocativas, podendo as próprias necessidades vitais da criança-ferida serem vivenciadas como ameaças. O aspecto aditivo está embutido no caráter retroalimentar que a destrutividade parental adquire. Neste processo de adição e compulsão, WHITFIELD in J, ABRAMS147, coloca os sobreviventes das vitimizações e seus familiares como “pessoas co-dependentes”. Faz-se necessário enfatizar, que este caráter aditivo requer intervenções legais e judiciárias, visando conter por meios externos, a compulsão abusiva parental, mesmo quando não se trata de uma Intervenção Punitiva Primária.

Os aspectos de adição, associam-se à Síndrome do Segredo, por um mecanismo de distorção da realidade, conforme esclarece SUMMIT in T. FURNISS148, que pode acarretar uma complexidade crescente ao tratamento da criança-ferida e do agressor:

[As crianças que sofreram abuso sexual em segredo, desamparo e sendo enganadas, começam a adaptar-se psicologicamente àquilo que, com o passar do tempo, constitui uma situação intolerável. A interação abusiva, que continuamente ameaça a vida e a integridade física e psicológica da criança, se torna, no processo de acomodação, um evento aparentemente normal. Estruturas psicológicas básicas que permitem a sobrevivência psíquica se desenvolvem ao custo de uma percepção gravemente distorcida da realidade externa e emocional.]

            Frente a este quadro de complexas interações aditivas emociossexuais, encontrar um caminho para a não reincidência do abuso, num contexto curativo, torna-se tarefa bastante difícil. Na busca de alternativas, BRADSHAW149, apresenta um [movimento de recuperação do alcoolismo.], que transformou-se num modelo fundamental e metáfora essencial para a cura, o resgate e o crescimento. À seguir, serão descritas as três fases, nas quais são apresentados os conflitos básicos que personalidades aditivas necessitam elaborar no seu caminhar rumo à totalidade.

Analogamente ao alcoolista, o abusador compulsivo está envolto em uma atmosfera de vergonha e menos valia, que o tornam impotente diante da árdua tarefa de recuperar-se. Sua inserção em grupos de apoio. Semelhantes aos Alcóolicos Anônimos, auxiliam este indivíduo ferido à recompor sua sensação de pertencimento à sociedade, por intermédio das vinculações interpessoais significativas que passa à estabelecer. O indivíduo que abusa, antes de tornar-se um agressor, é uma criança-ferida vitimizada pela vida, logo que traz uma profunda sensação de exílio, exilado muitas vezes da família de origem, da família que constituiu e que passou a destruir, e de si mesmo.

Existe um grupo de apoio para pais espancadores de seus filhos, cujo slogan apela “Antes de pegar seu filho…pegue o telefone”, tornando cabal a dificuldade que estes pais possuem de controla a compulsão, necessitando falar com outros companheiros de seu grupo, capazes de contê-los em seus impulsos destrutivos. Estas sucessivas contenções psíquicas compõem a primeira fase do processo de recuperação.

A segunda fase, consiste no que o autor chamou de sair de casa, caracterizando a fase do desnudar. Nas palavras de BRADSHAW in J. ABRAMS150. [Para ficar livre, precisava fazer um trabalho relativo à minha família de origem. Eu aina precisava crescer e realmente sair de casa.] Explicando ainda que, [Sair de casa significa romper os nossos relacionamentos originais. E uma vez que carregamos grande parte de nossa vergonha como decorrência dessas relações, sair de casa é uma maneira poderosa de reduzir a vergonha.]

            Este sair de casa psíquico, pode libertar a criança-ferida do jugo de ser constantemente vitimizada, do fardo de ser bode expiatório, de sua destinação de exílio e fracasso, e quando já se transformou em agressor, do peso de ter se tornado o agente perpetuador da Maldição Familiar.

O passo seguinte, a Fase 3, consiste em trabalhar com a elaboração da dor original. A criança-ferida vitimizada, quando adulta, deve sofrer a perda de sua infância, sofrer o luto não vivido, ou seja, libertar o corpo enlutado (em capítulo subsequente o processo psicossomático de liberação corporal será discutido), das antigas dores bloqueadas. BRADSHAW in J. ABRAMS151: [Devemos desnudar e expor o sofrimento paralisado dentro de nós.]

  1. ABRAMS152 ainda, no que se refere à dor original, salienta o quão importante é poder compartilhar a dor e o trauma com uma pessoa capaz de ouvir e acolher, ou seja, nas suas palavras: [[Quando uma criança é abandonada por negligência, abuso ou por emaranhamento na trama emocional dos pais, além da mágoa e da dor, existe a indignação.

As crianças necessitam que sua dor seja validada. Precisam que lhes seja mostrada a maneira pela qual podem descarregar seus sentimentos. Precisam de tempo para fazer esse trabalho de descarga e precisam de apoio.] E acrescenta, utilizando-se das palavras de MILLER153: [Não são os traumas que sofremos na infância que nos tornam emocionalmente doentes, mas a incapacidade de expressar esses traumas.]

            A ideia desta necessidade humana de compartilhar, é enfatizada por outros autores comprometidos com as dores infantis, não restringindo aqui, infantil às dores das crianças cronologicamente estipulada, mas às dores de todas as crianças interiores que ficam soterradas e caladas na Alma dos adultos.

A partir destas reflexões acerca da necessidade de compartilhar, falando e chorando dores, dividindo-as com pessoas significativas, pode-se mensurar o quão danoso se torna a Síndrome do Segredo, tanto para as crianças-feridas em processo de vitimização, quanto para os adultos há anos silenciados. O capítulo à seguir, retrará este drama do silêncio. Esta etapa da viagem é fundamental para a compreensão e libertação da Alma.

  1. ABUSO SEXUAL DA CRIANÇA. Porto Alegre. Artes Médicas. 1993. Pp. 63-70.
  2. Op. Cit. p. 31.
  3. Op. Cit. p. 65.
  4. Op. Cit. p. 66.
  5. Op. Cit. p. 321.
  6. Op. Cit. p. 37.
  7. O REENCONTRO DA CRIANÇA INTERIOR. São Paulo. Cultrix. 1994. P. 159.
  8. ABUSO SEXUAL DA CRIANÇA. Porto Alegre. Artes Médicas. 1993. P. 34.
  9. O REENCONTRO DA CRIANÇA INTERIOR. São Paulo. Cultrix. 1994. P. 209.
  10. Idem. Ibdem.
  11. Op. Cit. p. 213.
  12. Op. Cit. p. 211.
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