Capítulo VIII

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

CAPÍTULO VIII

SEQUELAS II – MECANISMOS DE DESTRUIÇÃO

As feridas que sangram

Num sentido ideal, a natureza humana aspira por uma vida saudável, prazerosa e construtiva, geradora de um indivíduo capaz de edificar sua existência, bem como, a existência de sua prole em harmonia.

Para garantir o sucesso de sua empreitada, nasce o ser humano, homem e mulher, com mecanismos somáticos que lhe propiciam lidar com os possíveis conflitos gerados por sua existência social. São mecanismos adaptativos, que o auxiliam à transpor as fases que compõem seu desenvolvimento: infância, maturidade e senectude.

Esse contínuo processo de relações e organização, dando uma forma as suas emoções, pensamentos e experiências, fornece-lhe uma estrutura. Essa estrutura, por sua vez, ordena os eventos da existência para si e em relação aos outros.

Tal processo pode, no entanto, sofrer alterações, que inviabilizam a construção de uma vida saudável e isto diz diretamente respeito ao tema neste estudo abordado, tratando-se do lado sombrio do desenvolvimento humano, apresentado em diferentes níveis.

Os mecanismos de adaptação portanto, podem cronificar desadaptações, os conflitos assumindo condições desestruturantes, e o instinto de sobrevivência, cristalizar-se no instinto de morte freudiano.  Ou ainda, cristalizar-se no medo, que segundo o Professor Waldemar Magaldi, seria a contraposição da vida na visão junguiana. Análise discordante da proposta psicanalítica que coloca a morte como contraposição do instinto de sobrevivência.

A criança-ferida no adulto, estratifica mecanismos de autoproteção permanentes, ainda que a ameaça real e concreta não mais exista. Nada é mais destrutivo nas pessoas que defenderem-se sem necessidade das possíveis ações destrutivas das pessoas com as quais convive. Tal fracasso de defesa imaginária pode levar a pessoa ferida, a destruir vínculos com as pessoas que lhes são caras, assim como, pode levá-la a um permanente desorganizar da vida, seja no comportamento afetivo, profissional e/ou familiar, uma vez que a vivência do prazer suscita-lhe a possibilidade de perdas, restando-lhe como única saída, a destruição do estado de estabilidade.

A este processo (des)adaptado, necessário para garantir a existência do indivíduo numa família desequilibrada, torna-se obsoleto na vida adulta, acarretando a necessidade ao indivíduo de erigir mais um processo de sobrevivência em detrimento da qualidade de vida. Novamente a criança-adulto-ferida se vê imersa num mundo de agressões contínuas, provocadas desta vez, pelos mecanismos de proteção obsoletos que ela mesma construiu.

Para E. KELEMAN ¹²³, as agressões internas e externas, acabam por ativar o Reflexo do Susto e suas repercussões somáticas, gerando uma cadeia de agressividade, conforme foi minuciosamente estudado no item Sequelas I. A libido impedida de circular livremente no organismo, passa a concentrar-se em camadas ou anéis (isto é, em zonas corporais transversalmente tensionadas por bloqueios energéticos), que se transformam em potenciais energéticos de agressão de retroalimentação, nos quais agredido e agressor formam uma unidade complementar.

A pessoa ferida busca no meio externo, situações que a ameacem e a agridam, desencadeando a excitação somática que deve ser contida pela estrutura, encontrando como forma de descarga para evitar o colapso psicológico, atitudes de agressão ao meio, expressas na destruição psicológica.

Esta destrutividade psicológica pode manifestar-se de duas formas compondo um verdadeiro Mecanismo de Destruição, conforme ideais de E. KELEMAN ¹²4:

[1.- Numa agressão deliberada ao meios, em atitudes violentas;

            Gênese das compulsões aos maus-tratos que os pais feridos impõe as suas crianças exteriores, e;

            2.- Num tipo de agressão camuflada, onde o indivíduo ignora a intencionalidade inconsciente da agressão, desorganizando, arruinando, produzindo efeitos negativos para si e para as pessoas que a circundam, bem como, para o meio ambiente no qual está inserido)]

            A destruição pode, portanto, se dar tanto por intermédios de violentos confrontos como por intermédio de provocação, negligências, insultos indiretos, perdas, ou seja, atitudes que aparentemente nada possuem de marcadamente hostis, mas que trazem em seu bojo uma intencionalidade inconsciente para desarmonizar negativamente pessoas, situações e a si próprios.

Tal estado de destrutividade em diferentes nuances, torna-se expressivamente marcante na criança-ferida, na qual o Complexo do Bode Expiatório se constela, conforme discute S. B. PERERA¹²5, nas ideias à seguir:

Na criança-adulto-ferida, no qual o referido complexo foi constelado, a auto-afirmação encontra-se comprometida, apresentando ação distorcida, ou seja, não cumprindo a sua função de zelar pelas necessidades do indivíduo, passando a exercer controles sádicos ou artificiais, que na maioria das vezes são ativados em detrimento do próprio indivíduo.

Há uma precária habilidade no indivíduo para lidar com a agressividade, uma vez que as manifestações da mesma, sempre foram repudiadas ou negadas à criança-ferida, mas permitida aos pais, conforme esclarece S. B. PERERA ¹²6: [Os indivíduos identificados com o bode expiatório na infância frequentemente experimentaram agressões não mediadas nas explosões tirânicas e inconscientes da sombra parental(…) Como testemunhas e/ou focos desse comportamento, conhecem bem o sentimento aterrador, aniquilamento mesmo, produzido por ele (…)Normalmente, não possuem experiência alguma de agressão metabolizada pelos pais, o que lhes permitiria distinguir entre o poder enquanto necessidade do ego e seu mau uso enquanto destrutividade aniquiladora e punitiva.]

            Não possuindo modelos externos adequados para lidar com a agressividade, a criança-adulto-ferida sob o domínio do complexo, tende a agir na polarização imposta pelo próprio complexo, ou seja, Azazel, o Perseguidor ou Acusador, ou como, o Redentor. Estas duas formas polarizadas de manifestação agressiva, que nesta abordagem, também significam formas possíveis de auto-afirmação, apresentam-se análogas à primeira possibilidade de manifestação da Destrutividade, expostas anteriormente por E. KELEMAN:

1.- Perseguidor: manifestação agressiva direta, podendo assumir a forma de explosões impulsivas e violentas em acusações justificadas contra os outros, contra si mesmo, contra o psicoterapeuta, contra as insânias do mundo.

Na identificação com Azazel, o Perseguidor, o invivíduo pode proporcionar-se fugidios momentos de alívio de tensão agindo, no entanto, em consonância com as sanções coletivas. Nas palavras de S. B. PERERA ¹²7, estas explosões seriam resultantes de uma [tendência de acumular-se toda uma série de incômodos, até o momento em que a pressão do sentimento possa irromper por entre eles com uma potência que põe por terra as inibições do superego.]

            2.- Redentor: manifestação agressiva racionalizada com uma justificada indignação social, aliada a uma necessidade compulsiva de realizar algum ato capaz de alterar o status quo.

            Sob a influência do Redentor, as realidade interna e externa, encontram-se cindidas em bem e mal. Como já foi elucidado anteriormente, polarizações absolutas, como bem e mal, existem no complexo, devido à fragilidade do ego, que encontra-se incapaz de dotar o indivíduo da capacidade de admitir a existência de ambivalências, função que é de sua competência.

Ao lado destas manifestações diretas e polarizadas de auto-afirmação, constela-se a Persona da Inocência, que consiste em atitudes de auto-afirmação veladas, gerando comportamentos passivo-agressivos, que constituem manobras que possibilitam a expressão dos impulsos dissociados, de forma indireta e normalmente inconsciente. Esta forma de manifestação velada, expressa o tipo de agressão camuflada descrita anteriormente.

Estas modalidades, S. B. PERERA¹²8, denominou Atiçamento, comportando a vingança fria e a vingança mágica; a Hostilidade Inocente, o rancor contra o self com supressão mágica e servidão ao acusador, elucidando que os indivíduos que fazem uso de tais subterfúgios psicológicos [apresentam seus impulsos agressivos não apenas dissociados como também voltados contra a autodestrutividade de seu ego-vítima, pois sua identidade é totalmente dependente da capacidade de apaziguar o Acusador e o Perseguidor.]

A modalidade atiçamento, envolve uma expressão segura da ira do indivíduo, incitando o outro, sutilmente a uma explosão, ou seja, conforme descreve S. B. PERERA¹²9, [atiçar o outro com a intenção de atacar primeiro proporciona às vezes – quando o instinto não se encontra por demais mutilado – ao bode expiatório uma aparente permissão para se defender.]

O indivíduo projeta na pessoa atiçada a identidade de alguma figura do passado que evocou sua ira, satisfazendo de forma mágica sua vingança. Igualmente o indivíduo través desta manobra pode estar atendendo à uma compulsão repetitiva, que uma vez não interpretadas e adequadamente contextualizadas, perdem sua eficácia de legitimar a queixa.

A Vingança fria opera com base na parte persecutório. Trata-se da animosidade que o indivíduo lança no relacionamento quando sente mágoa e raiva ao ver suas carências não atendidas pelo outro.

Na modalidade Inocente Hostilidade, o indivíduo adota a postura de jogar culpa, ou seja, assume uma atitude de tamanho sofrimento perante a atitude do outro, tida como ofensiva, numa ira desesperada que induz o outro à compensá-lo sob a acusação velada “por aquilo que você me fez.” Esta é uma forma indireta de punir o agressor.

Estes Mecanismos de Destruição minam relacionamentos, destruindo vínculos, acumulando mágoas, ressentimentos e mais destruições, podendo assumir a forma de autodestruições na quarta modalidade a ser descrita, ou seja, da auto-afirmação rancorosa. Nesta modalidade, a ira reprimida volta-se contra o ego-vítima, denotando que o indivíduo sob os ditames do Complexo do Bode Expiatório, firmou um pacto com Azazel, o Perseguidor.

Nesta autodestruição há a perda do instinto de autoproteção; e/ou a autoafirmação pode tomar a forma de atos impulsivos de autopunição, resultantes de um sadismo voltado contra o corpo.

No primeiro caso, a criança-adulto-ferida deixa de cuidar de si próprio, negligenciando suas necessidades vitais, numa tentativa de inconscientemente externar sua ira represada, sem macular sua intenção consciente de virtude e bondade. Pesa que ao tornar-se prejudicial a si mesma, não estaria fazendo mal ao coletivo, uma vez, que tanto o ego-vítima, como o corpo desqualificado, não são percebidos como dignos de respeito pelo próprio indivíduo.

O segundo caso, o da autoafirmação autopunitiva, traz o rancor em relação às próprias carências e mágoas como tão expressivo quanto o rancor aos rejeitadores primeiros das necessidades da criança-ferida. Há um desejo de auto-imulação, reprimindo e negando qualquer possibilidade de obtenção de prazer ou gratificação. Foi a negação das necessidades vitais, que possibilitou à sobrevivência da criança, portanto para continuar viva é preciso não sentir emoção alguma.

  1. B. PERERA130 explica o quão trágica pode ser esta manobra autodestrutiva:

[Poucas são as razões de viver, sendo típico que tais indivíduos esperem ou planejem morrer jovens. Eles acham que qualquer ação está fadada ao fracasso e, com isso, desistem, com um senso de futilidade do tipo “para que se incomodar?” antes mesmo de começar. Normalmente eles não encontram uma forma viável de curar ou de afastar sua mágoa primitiva, associando-a ainda, a um desamparo abjeto, característico da vítima e a uma intensa rejeição. Nesses casos, corre-se o sério risco de que a ira vulcânica represada, ao romper o frágil invólucro do ego persona pouco desenvolvido, conduza a uma psicose.]

            Estas possíveis tragédias individuais, enredadas em cadeias de destruições contínuas, podem no entanto, adquirir proporções muito mais devastadoras, quando a criança-adulto- ferida, forma uma família. Pois é no cenário familiar que sua ira vulcânica vai burlar defesas psíquicas e se manifestar direta ou camufladamente. As destruições para a prole e para as gerações seguintes é deflagrada, assim como o foi nas gerações antecedentes.

O ciclo das mortes dos corpos e do espírito é implacável, sempre ávido por novas vítimas serem imoladas e posteriormente vingadas. O quão danoso para uma criança será vivenciar na sua vulnerabilidade, a vingança fria, a hostilidade inocente, o aspecto Azazel, o Perseguidor de seus próprios pais sobre si mesma. O quão devastador pode ser a falta de significado de vida dos pais para um filho. Quem irá mostrar-lhe que vale à pena viver?

O presente capítulo, versou sobre o Mecanismo de Destruição ativado na criança-adulto-ferida no qual o Complexo do Bode Expiatório foi constelado, apresentando as diferentes formas e diferentes níveis que tais destruições podem adquirir, abordando as repercussões à nível orgânico, psíquico e existencial a que foram vitimizados.

Em capítulos procedentes, serão tratadas por sua vez, as repercussões de tais vitimizações destrutivas nas gerações subsequentes, compondo uma gama de maldição familiar, capaz de alijar muitos seres humanos de seus poderes de criação e construção saudável da existência, gerando indivíduos assustados, acuados e danosos.

  1. ANATOMIA EMOCIONAL: a estrutura emocional. São Paulo. Summus. 1992. Pp. 76-8
  2. Op. Cit. p. 78.
  3. O COMPLEXO DO BODE EXPIATÓRIO. São Paulo. Cultrix. pp. 75-89
  4. Op. Cit. pp. 75-76
  5. Op. Cit. p.77.
  6. Op. Cit. p. 79.
  7. Op. Cit. p. 80.
  8. Op. Cit. p. 89.
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