Capítulo VI

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

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CAPÍTULO VI

MALDIÇÃO FAMILIAR

Dinâmica Familiar Intergeracional Sombria

A partir das explanações anteriores, pode-se sinteticamente conceber o bode expiatório e a vítima sacrificial como catalisadores das potencialidades sombrias das pessoas que compõem seu grupo social. Portanto, conforme enuncia R. Girard, com uma função social preventivo-curativa da violência humana intrínseca.

Tanto a vítima sacrificial como o bode expiatório, enquanto vítimas aleatórias, não são passíveis de serem vingadas, uma vez que estas vitimizações são uma espécie de acordo grupal tácito, uma permissão para a “livre” manifestação da violência. Seriam portanto, modelos de expressão contida da sombra grupal. Desta forma, caberia refletir que apesar de não estimular diretamente o círculo da vingança, o próprio uso do “modelo” acaba por gerar novas vítimas.

Esta concepção de vitimizações sucessivas ao ser transposta para o universo familiar, torna-se uma verdadeira Maldição Familiar, ou seja, um herança emocional sombria, na qual sempre existirão pessoas expiando pela sombra velada (rivalidade, ciúmes, inveja, hostilidade e outros) do grupo, principalmente enredados com a sombra dos pais.

Os indivíduos feridos eleitos e incumbidos da expiação coletiva, acaba inevitavelmente comprometendo seu próprio desenvolvimento psíquico e somático, tecendo em sua Alma uma trama de destrutividades e hostilidades caladas, verdadeiros Mecanismos de Destruição, prontos a serem deflagrados contra seus próximos e contra si mesmos.

Esta trama contendo um amplo espectro de destrutividades, acaba por constituir-se numa dinâmica de funcionamento familiar intergeracional sombria, comprometendo e sendo consequência da sombra familiar de muitas gerações, conforme explicita J. ABRAMS 94: [Devemos lembrar-nos de que os pais não são os únicos responsáveis pela Maldição Familiar. Como disse C. G. Jung: ‘Não são tanto os pais, e sim os ancestrais – avós e bisavós – que são os verdadeiros progenitores.]

Para corroborar esta ideia de ancestralidade dos conflitos familiares presentes, caberia citar as propostas de M. ANDOLFI & C. ANGELO95, que analisam os conflitos do indivíduo, a partir de uma análise familiar em triângulos e redes trigeracionais, ou seja, propõem que o indivíduo do grupo tido com “problema”, torna-se um indicador das relações familiares, apontando áreas conflituais e interpessoais significativas, que ao serem tratadas, libertam o indivíduo das atribuições funcionais e das tensões que pesam sobre ele, e que pertencem em igual medida aos outros interlocutores familiares e à outras gerações.

Os referidos autores96 ainda, esclarecem que [aprendemos a considerar o paciente como sendo o fio de Ariadne e não como Arianna: isto é, não devemos logo cuidar dele (do paciente identificado) como indivíduo isolado com exigências e necessidades próprias, separando os dados de nossa observação dos aspectos funcionais de fio que o paciente nos mostra. Devemos acolher e defender explicitamente o sofrimento e a necessidade de autonomia do paciente muito mais adiante no processo terapêutico, quando este servir menos à família como baricentro de suas tensões e conflitos e puder reconhecer suas exigências e necessidades. Isto é, quando as emoções individuais não precisarem mais ser sacrificadas em nome de uma emotividade familiar indiferenciada.] Enfatizando que tal emotividade familiar indiferenciada deve abarcar, no mínimo, a geração anterior a dos pais, ou seja, de considerar os avós, evidenciando uma rede trigeracional de análise, exemplificando que, se a esposa tem um relacionamento difícil com a mãe ou com o marido, é provável que as expectativas não correspondidas por eles sejam transferidas para a filha.

No contexto da Psicoterapia Familiar, o chamado paciente identificado, seria o que para o presente estudo está sendo denominado bode expiatório ou vítima sacrificial. O processo acima descrito é, de certa forma, bastante comum na dinâmica familiar dos indivíduos que recorrem à psicoterapia. Caberia, no entanto, bem compreendê-lo para realizar à posteriori sua transposição e adaptação ao universo das vitimizações infantis, nas quais os abusos sexuais e físicos, podem extrapolar os sintomas tratáveis, podendo chegar a serem letais, o que transformaria o bode expiatório em legítima vítima sacrificial, conforme concebida nas comunidades primitivas.

  1. DOLTO 97, reforça a existência destas vítimas sacrificiais expiatórias, as quais chamou de crianças marcadas [não pelo seu nome, mas em nome daquilo que herdaram, com o peso do interdito (sombra), anterior à sua concepção ou concomitante com seu nascimento.] Atribuindo a estas crianças a função de medicamento da família [não porque os cure, mas porque se faz, por assim dizer, esponja de seus problemas, e esta esponja viva pode ficar marcada pelo interdito do desejo em seu próprio nome, graças ao que os outros vão levando vida bastante bem.] Em suma, [um só é sacrificado por todos.]

            A referida autora98, acrescenta que o filho pode ser o estabilizador dos conflitos parentais, ou seja, [seu filho é o lugar de encontro das zonas da sombra e de não-dito da vivência emocional de um em relação ao outro (os cônjuges) no encontro não expresso das pulsões de ódio recíproco.]

No âmbito dos ódios não expressos entre os cônjuges, que segundo K. FALLER 99, uma das quatro funções do abuso sexual é a expressão de sentimentos coléricos, advertindo que a criança pode servir à expressão da raiva. Uma raiva que pode ser destinada contra uma mulher específica, a própria esposa ou a sua própria mãe, ou contra as mulheres de um modo geral, ou ainda, a outras situações opressivas da vida do agressor.

A partir das ideias anteriores, observa-se que as crianças encontram-se em situação bastante vulnerável em relação às dores e sombras de seus próprios pais. C. G. JUNG 100, afirma que:

[As crianças estão tão profundamente envolvidas na atitude psicológica de seus pais que não é de espantar que a maioria das perturbações da infância possam ser atribuídas a uma atmosfera psíquica comprometida do lar de origem…não pode haver dúvida de que é de máximo valor que os pais enxerguem os sintomas de seus filhos à luz dos seus próprios problemas e conflitos.] Quanto mais dores a história dos pais, mais dores serão impingidas à criança inevitavelmente ferida dos filhos.

  1. BERKE 101, discute o quão verdadeira é a tirania dos pais sobre os filhos, trazendo personagens lendários como representantes dos vastos poderes de destruição oculta com os quais alguns pais podem estar investidos:

            [Feiticeiras e gigantes não são meros produtos de imaginação extravagantes, da visão dos pais aos olhos da criança ou de assustadoras invenções dos pais. Dizem respeito a lembranças arcaicas e não tão arcaicas da infância e dos cuidados com a criança. Segundo o psico-historiador Lloyd DeMause, trata-se de uma sucessão pavorosa de relações entre pais e filhos nas quais quanto mais se volta atrás na história, mais baixo é o nível de cuidados com a criança e mais possibilidade há de ela ter sido abandonada, espancada, aterrorizada e objeto de abuso sexual.]

            No item precedente, verificou-se o quão comum eram os infanticídios e o uso ritualístico de crianças e adolescentes, a partir da concepção histórica de que eram seres com reduzido valor social, logo facilmente sacrificáveis. Esta parece ser a premissa mental e emocional que opera no raciocínio dos abusadores contemporâneos de crianças e adolescentes, algo como uma herança cultural sombria.

  1. BERKE102 segue seu discurso, denunciando que nas relações entre pais e filhos existe um equilíbrio de terror, sendo que ressentimentos não são exclusividade dos filhos em relação aos pais, como normalmente se postula, mas e principalmente que, os pais são também assaltados por terríveis tensões cuja responsabilidade atribuem frequentemente aos filhos. Alega que, numa época de narcisismo, as atenções especiais que as crianças exigem, passam a ser incômodas e aversivas, uma vez que os pais preferem conservar s cuidados para si mesmos. Conforme descreve ainda o autor 103:

[Bebês e crianças espancadas têm pais que revertem os papéis. Insistem para que os filhos cuidem deles e ficam enraivecidos se isso não acontece. Certa mulher que machucou muito o filho comentou: ‘Nunca me senti amada em toda a minha vida. Quando o bebê nasceu, achei que ele me amaria. Quando chorava, isso queria dizer que não me amava. Então bati nele.]

            Este é um caso típico de conflito entre gerações, nos quais a criança ferida é vitimizada, carregando o fardo de uma mãe que inveja o amor e a vitalidade incorporados e nascentes no filho, devido ao fato de nunca ter se sentido amada pelos próprios pais, que por sua vez, também nunca tenham conhecido o amor.

A raiva materna pode chegar a estender-se a um filho não nascido. Pelo mesmo motivo da vitimização acima descrita, a mãe pode temer que o filho se torne o centro das atenções familiares, atenções que sempre almejou conquistar. Desta forma, trava-se um conflito no qual a determinação da mãe de alimentar e proteger o feto luta com seu desejo de competir com ele e destruí-lo. Este conflito pode instaurar uma dinâmica conflitiva, na qual ataques diretos, desejos de um aborto natural e esperanças que a criança nasça deformada, emerjam como retaliações vingativas ante os sentimentos de negligência e abandono vivificados pela própria mãe quando bebê.

Este processo de impingir ao filho a dor sofrida na relação com os próprios pais, no caso, a mãe, gera um mecanismos no qual a destrutividade maternal geralmente apresenta-se como defesa contra a destrutividade maternal sofrida. Num modelo de relações mãe-filho envolvendo três gerações, onde a inveja e o ciúme encontram-se à sombra, desencadeando de forma velada um Maldição que será inevitavelmente transmitida de uma geração para a geração seguinte.

Outra manifestação sombria e destrutiva para a Alma do filho se dá quando a existência do bebê serve ao propósito de curar a mãe de seu vazio emocional e existencial, gerando uma dependência materna à existência do filho, que por sua vez deflagra um ódio intenso por ele nas poucas vezes que consegue vê-lo como pessoa separada de si mesma. Estes momentos podem dar vazão à espancamentos e abusos psicológicos da criança-ferida, danos capazes de torna-la inapta para afastar-se da mãe, fazendo-a voltar a seu “regaço”, refazendo a simbiose. Algumas mães chegam mesmo à debilitar a capacidade de viver dos filhos, no intuito de tê-los dependentes de si. Neste caso, presentifica-se o aspecto terrível da Grande Mãe, isto é, nas palavras de E. NEUMANN 104: [essa mulher que gera a vida a todas as criaturas vivas que há sobre a terra também é, ao mesmo tempo, aquela que devora e traga suas vítimas, que as persegue e aprisiona com laço e rede.] Por certo, é desta forma grandiosa e mutilante que os filhos devem se sentir frente a este aspecto sombrio maternal.

Na contraparte masculina, do pai brutal, J. BERKE105 o identifica com [gigantes, titãs, dragões, dinossauros, ogros e “grouls” (espírito maléfico que, segundo a superstição muçulmana, viola sepulturas e devora cadáveres) representam o pai agressivo e egocêntrico. É o homem que domina a mulher e os filhos e satisfaz de má vontade suas necessidades, ao mesmo tempo em que canibaliza os recursos emocionais e materiais da família.]

            Retomando as ideias de K. G. FALLER 106, no que se refere as funções do abuso sexual incestuoso, enquanto oportunidade de exercer poder, argumentando que imbuído de um princípio de dominação, o agressor é levado à abusar de seus filhos, uma vez que estes os pertencem e encontram-se à disposição para satisfazer suas necessidades egocêntricas, sejam físicas ou emocionais sombrias.

A rivalização com o filho-bebê, igualmente pode ser constatada na relação do pai com sua prole. A inveja que sente pela situação tida como privilegiada do bebê, o qual possui suas necessidades satisfeitas imediatamente e sem esforços, aliada ao ciúme que sente da esposa-mãe que no universo inconsciente pode conceber o nascimento, como uma situação análoga à da esposa ter arranjado um amante, o bebê. Acrescido de um medo de que sua existência na família seja suplantada pela existência do filho, conforme descreve J. BERKE 107: [as crueldades do homem incluem também inveja e ciúme, o ódio despertado pelo desafio de uma terceira pessoa pela preponderância na família.], podendo levar o homem a almejas destruir o filho.

Este temor masculino possui raízes históricas e arquetípicas, retratado nas lendárias histórias nas quais, segundo J. BERKE 108: [todos os homens tendiam a ser suplantados pelo fruto do ventre de uma mulher, crianças que naturalmente ficariam mais velhas e mais fortes, enquanto seus pais ficariam mais velhos e mais fracos.] No contexto da mulher, este medo de uma sucessão, estaria atrelado a beleza e ao poder de sedução, o que leva a refletir na gravidade da situação triangular que se instaura, quando a filha, a sucessora, é escolhida pelo pai como “parceira” sexual.

O universo das invejas, ciúmes e rivalidades parentais não expressas e reprimidas sustentou muitas práticas educacionais sádicas, sob o pretexto, não menos dissimulador, de educação da juventude. Conforme sustenta J. BERKE 109: A ideia de que crianças fossem essencialmente pecaminosas surgiu da desenfreada tendência dos pais em trata-las como alvos projetivos de seus próprios desejos perdidos ou malícia não percebida. Em outras palavras, as crianças não eram crianças, seres separados, mas tristes espelhos dos sentimentos importunos ou da subjetividade destruída de seus pais e dos pais de seus pais.]

            O espancamento do personagem Zezé, descrito no capítulo II, retrata esta projeção sombria do pai sobre a criança. Sob o pretexto de educar o filho, que cantava músicas tidas como obscenas, o pai, esmagado emocionalmente pela frustração, pelo desemprego e pela perda de sua dignidade humana, passou à investir violentamente contra o filho, espancando-o. O episódio contou com o silêncio familiar, que evitou chamar o médico e atrair a desconfiança pública, e com a cumplicidade materna que, acaba por reforçar a atribuição da culpa do espancamento à criança, alegando que o filho é sempre muito indisciplinado.

O episódio de espancamento de “Zezé”, demonstra que pouco mudou na situação da criança, relatada por Berke, e que retrata a feroz determinação por parte dos mais velhos para quebrar a vontade das crianças, tidas como teimosas e obstinadas, em meados do século XVI. Este século que gestou importante mudanças culturais e sociais, moldou igualmente, a figura da Criança Combinada, isto é, na descrição de J. BERKE 110:

[Butler articulou temores que vêm da pré-história aos tempos modernos, de que as crianças fossem moralmente perigosas para os pais. Tais temores abrangem uma perspectiva dual, conclusões objetivas de que os meninos sobrepujam os pais e as meninas as mães, seja como um fato da natureza, seja para devolver as mágoas que realmente sofreram, e impressões subjetivas das crianças como ‘pequenos demônios’. A aterradora e odiada figura resultante é a Criança Combinada. Esta é a imagem fantástica, que governa os adultos exatamente como o Genitor Combinado governa as crianças.]

            A figura desta criança ameaçadora e odienta, com tendências humanas sombrias careciam de ser subjugadas, e aos pais e educadores caberia a árdua tarefa de fazê-lo, não importando os meios utilizados para tanto. Uma vez que existia uma criança combinada, a emergência de um Perseguidor Parental, tornou-se inevitável. Este ser adulto fazia jus à todas as imagens demoníacas que dele emanaram, conforme demonstra J. BERKE ¹¹¹:

[Um pai opressivo e explorador agindo em conjunto com uma mãe egoísta e ressentida constituem o Perseguidor Parental, uma pessoa caricatural, parte feiticeira, parte gigante, que pode ser sumamente perigosa para sua prole, enchendo-a de projeções perniciosas (orgulho, insolência, sexualidade, inveja) e depois atacando-a por ter ‘má índole’. Basicamente, essas pessoas tratam os filhos como latrinas, receptáculos convenientes para seus próprios impulsos (perversidades) denegados e dominados pela culpa.]

Faz-se oportuno rememorar que a criança-ferida na qual o complexo do bode expiatório se constela, possui permeabilidade psíquica para aceitar como reais e como suas tais projeções perniciosas e depreciativas. Esta espécie de cumplicidade que estabelece com o perseguidor, acaba por torna-la sem defesa contra os abusos físicos e sexuais que venham a lhe ser impostos.

Às concepções de Perseguidor Parental, Genitor Combinado e Criança-Combinada, o autor amplia a gama de figuras sombrias no palco familiar que denominou equilíbrio do terror, acrescentando a figura do Perseguidor Filial, um vingativo inimigo dos mais velhos e das tradições estabelecidas, não menos perniciosa que o Perseguidor Parental, o adulto que endemoniza e vitimiza os jovens.

Em suma, os perseguidores filiais e as crianças combinadas, juntamente com os perseguidores parentais e os genitores combinados, constituem uma matriz de malícia que afeta todas as famílias. Esta matriz constitui a sombra familiar de que trata o presente estudo, tornadas sombrias por serem continuamente enclausuradas no inconsciente familiar, geração após geração. Ainda nas palavras de J. BERKE¹¹²: [As paixões extremadas desencadeadas por pais em relação aos filhos, ou por filhos em relação aos pais, nunca são resolvidas quando elas assumem uma existência subterrânea.] Eis a Maldição Familiar.

            Caberia enfatizar que, no presente estudo, estas paixões são corporificadas no abuso sexual incestuoso e no espancamento infantil, logo alguns questionamentos se fazem oportunos. Portanto, conforme foi analisado em capítulos anteriores, as crianças feridas, vítimas de abuso sexual incestuoso, em geram, não se lembram do abuso, trancafiando no inconsciente as lembranças devastadoras: Como então proteger seus filhos da compulsão à repetir sua própria história? Comprovado está que pais que sofreram abusos, passam a abusar seus filhos, por compulsão, conforme esclarece T. FURNISS ¹¹³:

[A razão individual para os pais se tornarem pessoas que abusam, ou para as mães serem incapazes de proteger, podem ser muito variadas. Ambos podem ter sofrido abuso físico ou sexual quando crianças. A experiência individual de vida dos pais faz com que muitas vezes seja compreensível por que eles reagem do modo como reagem e porque escolheram um ao outro como parceiros, frequentemente recriando o padrão familiar de suas próprias famílias de origem.] Neste tocante, o item referente à identificação da criança abusada com o agressor, será bastante esclarecedor.

Logo, retomando e enfatizando a questão, como os pais podem proteger seus filhos de algo que desconhecem em si mesmos? Como proteger os filhos do espancamento, da punição desmedida, se ignoram a intensidade da punição sofrida na infância, pelo processo de cumplicidade com o Perseguidor Parental, alegando que foi justa a punição recebida? Como estabelecer para estes pais feridos, parâmetros de represália?

Os lares das crianças-feridas incestuosamente abusadas, em geral são desprovidos de toques afetivos, são lares nos quais o corpo e os carinhos são tabus, permitidos apenas na embriaguez psíquica do abuso. Rememorando K. G. FALLER ¹¹4, faz-se necessário caracterizar a terceira função do abuso sexual incestuoso, isto é, um esforço para expressar e receber afeição. Desprovidos de modelos de trocas afetivas, os pais abusadores possuem dificuldade de externar um toque corporal dessexualizado, misturando afeto e sexualidade, mesmo quando sua intenção primeira é apenas o contato afetivo, a intimidade humana.

Muitas vezes, os abusos são permitidos em segredo nas famílias, devido à funcionamentos familiares comprometidos, nos quais, os pais e os filhos parecem estar em um nível emocional pseudo semelhante. Nas palavras de T. FURNISS¹¹5:

[Muitas vezes, uma das crianças assume o papel de organizador da família e cuidador emocional dos pais e irmão. Como consequência da mútua dependência e privação emocional de ambos os pais, essas famílias não possuem fronteiras intergeracionais adequadas.] Corrobora-se ainda, a existência de abuso sexual na família, pelo fato de que o relacionamento sexualmente abusivo ajuda a diminuir o conflito conjugal, que poderia levar à ruptura familiar, ou seja, na família que regula e reprime conflitos, o abuso sexual serve para estabilizar os picos do violento conflito conjugal que ameaça a coesão familiar.

Imaturidade afetiva, desestruturação familiar, dores esquecidas, rivalidades inconfessas são os ingredientes que compõem a Maldição Familiar das crianças-feridas vitimadas. São sobreviventes nascidos da sobrevivência. Tudo o que se refere à criança-ferida, está portanto relacionado à sobrevivência. Estas famílias com desequilíbrios mais severos, ameaçam a sobrevivência física da criança, e esta para proteger-se num reduto familiar que não a protege, lança-mão da morte do espírito e/ou da Alma para existir. Não importando naquele momento se naquele existir esteja sendo forjada uma vida de vazio, depressões e tristezas constantes, uma vez que é este o preço que uma vida não vivida por e para si mesmo acarreta.

A partir das discussões anteriores, pode-se afirmar que este é o destino da criança-ferida: desenvolver-se sobre o estigma de sobreviver para aplacar a dor da criança-ferida do adulto responsável por protegê-la.

No esforço desesperado para sobreviver, vitimiza-se se isto for necessário. Caso a criança-ferida do pai ou da mãe foi abusada sexualmente, deixa-se abusar, silencia-se, conforma-se e sobrevive. Ou, se a criança-ferida do pai ou da mãe foi espancada, deixa-se espancar calada para garantir, quem sabe, migalhas de amor em função de sua existência vitimizada. Neste período estas migalhas de amor garantem sua vida.

  1. L. WHITFIELD in J. ABRAMS ¹¹6, discute que estas crianças-feridas sobreviventes tornam-se co-dependentes da, por assim dizer, loucura familiar, seja ela gerada por alcoolismo, droga ou psicopatologia de um de seus membros. Para sobreviver fazem uso das muitas defesas que o ego tiver condições de forjar, ou seja, sobrevivem trapaceando, escondendo-se, negociando, fingindo, negando, anulando-se para cuidar do outro, adaptando-se com mestria à loucura. O mecanismo de destruição de si mesma e das pessoas a sua volta torna-se, portanto, uma estratégia de sobrevivência, pois não há nada mais destrutivo do que matar a própria individualidade, exilando a criança-interior, potencial de crescimento, em calabouços sombrios, submersos para muito além do ego domesticado, adaptado, enlouquecido que move-se com relativa segurança na esfera familiar também enlouquecida.

A tragédia da instauração de tais mecanismos de emergência, engendrados como verdadeiros equilíbrios do terror, consiste na sua utilização após o afastamento dos perigos da vida familiar, quando a criança-adulto-ferida atinge a vida adulta. Ao trazer e fazer uso dos meios e adaptação infantil na esfera adulta, e portanto já diferenciada, acaba por desadaptar-se indo buscar refúgio na loucura, ou estabelecer uma relação conjugal, na qual possa recriar e perpetuar o equilíbrio do terror na infância. Há ainda, uma outra saída, aquela que norteia o ideal deste estudo, isto é, o processo de recuperação da Alma, com o reencontro da criança interior ferida.

Para atingir este ideal, no entanto, é preciso viajar pelas muitas sequelas que esta existência vitimizada deixou no corpo e na Alma. É preciso viajar no abismo dos vínculos fragmentários e destrutivos que aprendeu a estabelecer. Vínculos comprometidos que, muitas vezes, a entrelaçam com o agressor num apego sombrio. No próximo capítulo, estes afetos sombrios serão iluminados pela tentativa de compreensão psicológica.

  1. O REENCONTRO DA CRIANÇA INTERIOR. São Paulo. Cultrix. 1994. P. 117
  2. TEMPO E MITO EM PSICOTERAPIA FAMILIAR. Porto Alegre. Artes Médicas. 1988. pp. 33-53
  3. Op. Cit. p. 53
  4. DIFICULDADE DE VIVER. Porto Alegre. Artes Médicas. 1988. P. 17
  5. Idem, Ibdem
  6. CHILD SEXUAL ABUSE. EW York, Colombia University Prees. 1988. P. 17
  7. DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE. Vol. Obras Completas. Rio de Janeiro. Vozes. P.
  8. A TIRANIA DA MALÍCIA. Rio de Janeiro. Imago. 1992. P. 170.
  9. Op. Cit. pp. 171-200.
  10. Idem. Ibdem.
  11. A GRANDE MÃE. São Paulo. Cultrix. 1996. P. 134.
  12. A TIRANIA DA MALÍCIA, Rio de Janeiro. Imago. 1992. P. 183.
  13. CHILD SEXUAL ABUSO. New York. Columbia University Prees. 1988. P. 17.
  14. A TITANIA DA MALÍCIA. Rio de Janeiro. Imago. 1992. P. 184.
  15. Op. Cit. p. 186.
  16. Op. Cit. p. 192.
  17. Op. Cit. p. 198.
  18. Op. Cit. p. 195.
  19. Op. Cit. p. 201.
  20. ABUSO SEXUAL DA CRIANÇA. Porto Alegre. Artes Médicas. 1993. P. 52
  21. Op. Cit. p. 17.
  22. Op. Cit. p. 57.
  23. O REENCONTRO DA CRIANÇA INTERIOR. São Paulo. Cultrix. 1994. P. 159.
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