Família também adoece! Um complexo sistema com subsistemas, fronteiras e desafios

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

Toda família é um possibilidade e um convite à evolução, seja por fornecer continente para a transformação de seus membros, seja pelos desafios que impõem ou pelas dificuldades que engendra. Como primeira “oficina de convivência”, neste núcleo forjamos as bases emocionais que conduzirão nossas relações afetivas e sociais ao longo da vida.

As famílias são compostas por suas conquistas, perdas, tragédias e, acima de tudo, pela “forma como conta suas histórias”, sempre tecidas pelos ecos emocionais que repercutem, velada ou acintosamente, no transcorrer das muitas gerações que se perpetuam. Mas, há algo que é comum a todas as famílias e que nenhuma está imune, ou seja, “todas tem problemas”, o que as diferencia no entanto, é a forma como lidam com eles.

Para que uma família tenha funcionalidade e capacidade de superar desafios, precisa desenvolver competências e se adaptar ao mutante ciclo da vida familiar, composto pelas diferentes etapas de desenvolvimento de seus componentes, resultado do transcorrer dos anos e de suas mudanças decorrentes.

Existem teorias e técnicas em Psicologia que abordam diretamente as interações familiares, considerando-as como “sistemas”, nos quais todos os seus membros são analisados em suas contínuas interações e o trabalho terapêutico é realizado a partir do modelo destas relações. Na análise sistêmica, cada parte do sistema costuma formar subsistemas e os indivíduos são reunidos portanto, em subgrupos conforme suas atribuições, surgindo desta forma, os subsistemas conjugal (casal), parental (pais ou responsáveis) e fraterno (irmãos).

Igualmente, nas teorias sistêmicas de família, são articuladas a ideia de fronteiras, ou seja, espaços de convivência delimitados para estabelecer e proteger os subsistemas e os indivíduos, atuando também como padrões que auxiliam na compreensão do funcionamento das interações dentro do sistema familiar. Logo, a qualidade das fronteiras define o modelo de funcionamento do sistema familiar, podendo ser analisadas a partir de três modelos básicos: Fronteiras rígidas, difusas e nítidas, que devem ser usadas apenas como modelos norteadores, pois nada do que é humano pode ser engessado em fôrmas absolutas.

As Fronteiras rígidas enclausuram os indivíduos em seus mundos, impedindo a troca de ideias e afetos, impossibilitando que as regras da casa se adaptem aos ciclos constantes e mutantes da vida e à singularidade de seus membros. São metaforicamente denominadas de quartéis, pela autoridade excessiva dos pais e subserviência dos filhos, com hierarquias estratificadas, um lugar onde portas são tão fechadas que impedem que as pessoas convivam.

Nas Fronteiras difusas, por sua vez, contraponto da rígida, a diferença entre pais e filhos é tênue, dificultando o estabelecimento de regras e a definição das figuras de autoridade. Um padrão no qual todos são tão iguais que a família fica confusa, com o desempenho de papéis indefinidos, ficando todos à deriva, sem rumo ou estrutura. Este funcionamento é chamado também de hotel, no qual não há vinculação afetiva ou comprometimento entre seus membros, as portas são tão abertas que inviabilizam a privacidade de seus moradores.

Ambos os modelos são tidos como disfuncionais e formam as duas extremidades de um espectro que pode apresentar uma expressiva variedade de nuances, tendo em comum a estratificação de funcionamentos que não permitem o crescimento e a convivência familiar saudável. O padrão de Fronteiras Nítidas, ao contrário, tido como funcional e ideal, caracteriza-se pela regência do sistema parental, responsável pelo estabelecimento de regras a partir das necessidades do todo, da harmonia do sistema e no qual, tanto ideias quanto emoções podem ser compartilhadas e manejadas de forma saudável e construtiva, tratando-se de um padrão no qual predomina o equilíbrio entre privacidade e convivência.

O trabalho com as famílias visando tornar suas fronteiras mais nítidas e o funcionamento familiar como um todo mais harmônico, passa pela composição e realização dos chamados Ritos de passagem, ou seja, um conjunto de tradições familiares e culturais, caracterizados pelas celebrações ou regras utilizadas pela família para incorporarem os nascimentos, casamentos, separações e as sucessivas perdas e conquistas que compõem a trajetória humana.

Como passagens, portanto, temos os diferentes ciclos da existência que requerem transformações no sistema, como a adolescência por exemplo, um período que exige muito do subsistema parental e que  precisa ajustar as regras e autoridade, flexibilizando as fronteiras, de forma a permitir que os  filhos  se tornem adultos, que criem a própria identidade, com liberdade mas com a segurança e firmeza necessárias para que a transição seja efetivada e novos adultos surjam com novas famílias e histórias.

Logo, a partir da transição da adolescência pode-se perceber o quanto é delicada cada mutação e cada ciclo, lembrando que toda transformação, ainda que traga ganhos, invariavelmente acarreta perdas, as quais precisam ser aceitas e incorporadas a novas dinâmicas familiares.

Perdas que são múltiplas e muitas vezes inevitáveis, sendo compostas por muitas modificações, tais como, crescer e deixar de ser “o bebê da casa”; deixar de ser “filho(a) único(a)”; libertar os filhos para que conheçam novos espaços, aventurando-se da creche à vida; aceitar que os pais se tornem vulneráveis e envelheçam; compreender que casamentos podem acabar e romper vínculos; aceitar que pessoas queridas adoeçam e partam, permitindo que a vida flua em seu ritmo e traga novas combinações e narrativas, expandindo fronteiras para acolher noras, genros, enteados, padrastos e madrastas, sogros(as) e todas as demais pessoas que sejam convidadas pela ciranda da vida a  compor novas coreografias e famílias.

Nesta dinâmica de permanentes (des)construções, alguns parâmetros precisam permanecer consistentes para servirem de norteadores, preservando a  funcionalidade da família, os quais devem estar alicerçados nas necessidades humanas de proteção, afeto, vínculos e trocas, considerando  o grau de maturidade das pessoas envolvidas, imprimindo uma hierarquia de responsabilidades e preservação entre os subsistemas, considerando por exemplo, que o subsistema parental (pais) não deve sobrepor ou anular o  conjugal (casal), da mesma forma que filhos(subsistema fraterno) pequenos e imaturos, não devem ditar regras e dominar os outros sistemas. Logo, é preciso que o sistema familiar funcione em equilíbrio, pois a família costuma atuar em combinações compensatórias, nos quais subsistemas com funcionamento precários, potencializam outros subsistemas, visando compensar e suprir deficiências.

A psicoterapia familiar busca trabalhar e envolver todos os membros em sessões conjuntas e combinadas, interagindo diretamente com os membros da família que  compõem e interferem no sistema, visando compreender e intervir nas estruturas e funcionamento das famílias para resgatar e (re)construir estas dinâmicas. Porém, muitas vezes, a psicoterapia tem acesso a apenas um dos indivíduos que fazem parte destes complexos familiares e, muitas vezes, estes mesmos indivíduos estão denunciando com suas dores, as dificuldades que pertencem e afetam todos os membros da família, são os tecnicamente chamados de “pacientes identificados” e que, como depositários das dificuldades do núcleo familiar, tendem a ser excluídos ou discriminados pelos demais componentes. A leitura sistêmica ou a intervenção direta na família, tende a dividir responsabilidades e possibilitar resgates e reparações.

As terapias psicodinâmicas e sistêmicas, sejam trabalhando com o todo ou com cada indivíduo, oferecem a compreensão da dinâmica das família, guardadas no mundo interior do cliente, ainda presentes em seu cotidiano ou apenas remanescentes em suas memórias, podendo ser tocadas, trabalhadas e suas possíveis feridas superadas. Lembrando que, sempre que exista uma criança, um adolescente ou um adulto com desejo de evoluir, suas mudanças podem tornar a si mesma mais saudáveis e, direta ou indiretamente, tocar e curar dificuldades de todos aqueles que estejam envolvidos consanguínea ou emocionalmente com elas.

A Psicologia portanto, em suas diferentes abordagens e concepções, está sempre em busca da compreensão, explicação e propostas de auxílio para o sofrimento emocional e para o desenvolvimento do potencial humano.

Por isso, o engajamento do cliente e a escuta abalizada e terapêutica adequada, permitem que os (des)encontros, o (des)amor, ressentimentos, rejeições e outras dores familiares sejam redimidas, possibilitando que novas histórias individuais e familiares sejam (re)escritas.

 

Referências Bibliográficas

 

– Carter, B. & McGoldrick – As Mudanças no Ciclo de Vida Familiar – uma estrutura para a terapia familiar. 2.ed. – Porto Alegre: Artmed, 1995

– Nichols, Michael P. & Schwartz, R. C.: Terapia Familiar: conceitos e método. 7 ed. – Porto Alegre: Artmed, 2007

– Minuchin, S. & Nichols,Michael P. & Lee, Wai-Yung – Famílias e Casais do sintoma ao sistema. – Porto Alegre: Artmed, 2009

– Almeida, A. – Pais e Filhos: fortalecendo vínculos. Fortaleza: Premius, 2014

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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