Pai afetivamente ausente e famílias feridas

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

Os responsáveis que participam dos momentos iniciais e estruturantes na vida de uma pessoa ficam impressas na sua história, nos tecidos emocionais de seu corpo e no recôndito de sua memória, produzindo ecos nos relacionamentos que serão estabelecidos no decorrer de toda sua vida.
Os primeiros cuidadores, portanto, são responsáveis por imprimir os referenciais que conduzirão os modelos de relacionamentos mais íntimos, os vínculos e apegos mais profundos. São as pessoas que se incumbem da função materna e da paterna, independentemente dos laços consanguíneos.
Nos primeiros sete anos da criança, a partir das vivências sócio-emocionais, são desenvolvidas as características básicas do caráter, as “marcas” que constituirão o “jeito” de ser de cada pessoa, seu modo de caminhar e enfrentar a vida.
Uma característica importante destas pessoas referenciais é que as “marcas” e memórias por elas deixadas, não se encontram alicerçadas em fatos, mas na forma como a criança viveu e lembrará desses fatos. Por essa razão as famílias são formadas por muitas e diferentes histórias, tantas versões quantas forem o número de membros envolvidos.
No momento, a proposta é refletir sobre a função paterna, seu impacto na infância e sua repercussão na vida adulta. Independente da pessoa que exerça essa função, do gênero a que pertença, sua principal função é a de apresentar o mundo à criança, um universo além do reduto e proteção maternos, abrindo caminho para a sociedade com suas leis e regras.
Nos últimos trinta anos, as pesquisas tem resgatado a influência do pai no desenvolvimento psicológico da criança, principalmente nos anos iniciais de vida, contrariando a crença de que o pai somente se fazia necessário após o terceiro ou quarto ano de vida dos filhos. O exercício consciente da paternidade tem recebido a denominação de paternagem, uma função de relevância similar à maternagem. A poesia da canção de ninar “Acalanto”, de Dorival Caymmi, descreve um momento lúdico e delicado da paternagem acolhedora e cúmplice:
“Lá no céu
Deixam de cantar,
Os anjinhos
Foram se deitar,
Mamãezinha
Precisa descansar
Dorme, anjo
Papai vai lhe ninar…”
Esse paulatino e sutil desligamento do universo materno, com a presença do pai, é necessário para a formação da identidade tanto feminina como masculina. Essas funções portanto, são necessárias para a estruturação da identidade da criança. A identidade de uma pessoa é construída a partir da identificação com um aspecto, atributo ou características de outra pessoa e, no processo de desenvolvimento infantil, o cuidador do mesmo sexo está a serviço desta primeira identificação.
Na paternagem adequada, portanto, além de base de identificação, a função paterna, estabelece os limites necessários para a compreensão e inserção na sociedade, com suas leis e regras, ajudando a criança a desenvolver o senso de responsabilidade, de autoconfiança, do potencial de realização e superação dos desafios da vida prática e seu acesso ao “logos”, ou seja da aptidão para a abstração e a objetivação. O manejo construtivo com a própria agressividade também é oferecido pela função paterna, que deve ajudar a criança à desenvolver recursos interiores para drenar e conduzir seus impulsos agressivos, com a equilibrada intervenção da razão, possibilitando o desenvolvimento das capacidades de (auto)afirmação, (auto)controle e independência.
No entanto, a função paterna, quando realizada de forma inadequada acaba por gerar feridas emocionais, com repercussões profundas e distintas em homens e mulheres. E essas inadequações podem ser involuntárias ou circunstanciais, o que não as tornam menos danosas ou prejudiciais. A ausência do exercício saudável da paternidade ou da função paterna, também estão presentes nos modelos autoritários, despóticos, rejeitadores e competitivos.
Segundo alguns autores (2, p. 12), os traumas mais frequentes estão relacionados a ausência paterna, que pode se dar por distanciamento físico, provocado por abandono, trabalho ou qualquer outro impedimento ou pela ausência emocional, quando o pai permanece indiferente às necessidades de afeto e atenção da criança. Acrescidos dos pais punitivos, que fazem uso de constantes ameaças de abandono, com o objetivo de disciplinar ou “educar” os filhos ou ainda, há os pais abusivos, que usam a violência física nesse mister; há também os pais imaturos, que precisam ser protegidos ou cuidados por seus filhos. E ainda, há os pais que culpam seus filhos pelas suas frustrações ou pelas dificuldades ou adversidades familiares.
Paternagens tóxicas podem lesar a autoconfiança, gerando timidez excessiva, dependência afetiva, angústias, depressão, dificuldade de adaptação às exigências existenciais e tantas outros conflitos e dificuldades de lidar com a realidade.
Pais ausentes podem abrir “buracos psíquicos” que criam buscas impossíveis, por pais imaginários, idealizados por filhos inconformados com suas ausências. São filhos(as) que buscam preencher a lacuna paterna nos relacionamentos com seus parceiros(as), nas amizades ou qualquer outra relação que seja uma promessa de encontrar a afeição ausente. Por serem idealizações, esses relacionamentos estão sempre sujeitos à decepções e frustrações, acarretando novamente a sensação de vazio e traição, reeditando a sensação de abandono.
Como a função paterna possui a incumbência de ajudar as crianças à lidarem com a agressividade, tanto a que promove realizações como a que provoca destruições, a ausência paterna ou sua agressão descontrolada geram despreparo e conflitos para os filhos(as), podendo fazê-los(as) herdar comportamentos excessiva e defensivamente reativos, autodestrutivos ou incapazes de construir relacionamentos à dois gratificantes ou duradouros.
Além dos modelos disfuncionais a serem seguidos, pais afetivamente ausentes, geram filhos que desprezam o masculino, logo, filhos que com seus pais não querem se identificar, e ao contrário, filhas, com o aspecto masculino se identificando, numa tentativa de superar o pai ausente, negligente, imaturo ou abusivo. Ambos e muitas outras versões de desencontros emocionais, são faces diferentes para o mesmo desprezo e desespero.
A partir da análise das dificuldades características da relação paterna, pode-se esboçar alguns modelos de funcionamento decorrentes. Tipos de funcionamento que afastam filhos e filhas de sua essência, que os fazem cativos de padrões destrutivos, bem como, os exilam de sua própria essência. Desta forma, nos homens, os desencontros com a função paterna podem gerar o “herói”, o “bom menino”, o “eterno adolescente”, o “sedutor” ou outros estereótipos que a falta de um modelo pessoalizado é capaz de gerar. E, nas mulheres podem surgir a “Amazonas”, a “eterna menina”, a “superstar”, a “guerreira”, a “descomprometida” ou outro “estereótipo” que evite a vivência autêntica da feminilidade.
Esses modelos são gerados, a partir de defesas emocionais para que dores não sejam perpetuadas ou para evitar que sejam despertadas ou (re)vividas. Todas as sutilezas da delicada relação com a função paterna não podem ser descritas ou apontadas, mas para toda ferida existem muitas possibilidades de superação e, a única função de descrever e compreender padrões relacionais conflitivos, é a de promover formas de transformá-los e redimi-los.

Superando as feridas

“Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer…”
Pais e Filhos
Legião Urbana

A canção do ”Legião Urbana” resgata a responsabilidade que cada pessoa possui sobre sua própria vida e sobre a necessidade de ir além das dores que lhes foram impostas, superando a passividade e a vitimização, transformando pessoas feridas em agentes de cura e transformação.
Em se tratando da ausência de paternagem, um dos primeiros desafios é o de reconhecer que mágoas e ressentimentos podem estar presentes, ainda que adormecidos ou encobertos por frases como “não tenho mágoas do meu pai” ou “já o perdoei”.
A cura das feridas, após o reconhecimento da dor, passa pelo desejo de superá-las, seguido da coragem de aceitar a dor de não ter tido o pai sonhado ou esperado, o luto pelo “pai” que nunca existiu, para acolherem e ampararem a si mesmo(as). Refazer a imagem paterna igualmente, possibilitará uma relação mais construtiva com o masculino, uma vez que muitos(as) filhos(as) não conseguem superar o desprezo e a mágoa que nutriram pelo pai ausente, transferindo esses sentimentos para seus companheiros, chefes ou outras figuras de autoridade.

Identificados os modelos disfuncionais, outras ousadias também são imprescindíveis, como as de assumir a responsabilidade pela independência emocional, aprendendo a desenvolver as potencialidades que ficaram adormecidas, tais como, autonomia, (auto)disciplina, condução apropriada da agressividade, (auto)confiança, bem como, o acesso consciente à própria sensibilidade e afetividade. Muitas vezes o mundo da amorosidade e o da força ficaram exilados dos(as) filhos(as) junto com o amor paterno, e junto infelizmente, rejeitaram o amor por si próprios(as).
Tantos resgates devem ser feitos com delicadeza, paciência e determinação, entregando-se à uma jornada de auto amor, transformadora e redentora. Aninhar-se nos próprios braços emocionais cria laços e abraços capazes de acolher novos filhos e filhas, curando antigas feridas familiares.

Referência Bibliográfica

1 – Leonard, Linda Schierse. A Mulher Ferida: em busca de um relacionamento responsável entre homens e mulheres. São Paulo: Saraiva, 1991
2 – Corneau, Guy. Pai ausente, filho carente; Barueri, SP: Manole, 2015


1 comentário

Mariane · Junho 20, 2020 às 10:48 am

Essa ferida dói mas tem cura.

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