O corpo rejeitado e o comer atormentado… obsessão pela vida fitness e transtornos alimentares

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

O sofrido universo das dificuldades alimentares precisa ser adentrado com muito respeito e delicadeza, pois remonta nossas necessidades primeiras de sobrevivência, as memórias de quando a nutrição de nosso corpo e de nossa vida dependia exclusivamente de nossos primeiros cuidadores. Por estar envolto em afetos tão primitivos, o ato de alimentar-se encontra-se entranhado às nossas necessidades essenciais, guardando dimensões profundas, capaz de produzir intensas repercussões emocionais, que podem desencadear desencontros e transtornos alimentares, de difícil compreensão e solução.
Os transtornos alimentares adquirem graus maiores de complexidade por se revelarem em nossos corpos, simbolizando o “cartão de visitas” que oferecemos à sociedade, e neste contexto, de apresentação, a exposição de algumas “gordurinhas” extras, com excesso ou escassez de peso, provoca críticas ou censuras sociais, que podem despertar antigos afetos de rejeição, abandono ou aconchego.
Logo, os alimentos estão imersos em memórias emocionais, e, discutir os transtornos alimentares portanto, é adentrar num território adverso, repleto de armadilhas e (des)caminhos, que requer muita pesquisa, sensibilidade e deferência. Anorexia Nervosa, Bulimia Nervosa e Compulsão Alimentar Episódica fazem parte dos transtornos alimentares mais frequentes e difundidos que acometem muitas pessoas, em diferentes etapas da vida e cujo impacto é bastante comprometedor para a qualidade de vida dos envolvidos.
Normalmente as mulheres estão mais sujeitas a este drama, devido à insidiosa “ditadura da beleza” que a todas invade e violenta, quando movidas por imagens idealizadas de corpos perfeitos, especialmente as adolescentes e mulheres jovens, veem-se aprisionadas num anseio de atender à modelos delgados inatingíveis, compostos por corpos esqueléticos ou retocados pelos aplicativos de fotos, devidamente afinados e embelezados.
As exigências sociais nos fazem confundir valor social com nossa capacidade de manter, ou não, nossos corpos delgados e atraentes. Então, quando malogramos neste intento de nos aparentarmos belos, temos a impressão de que somos incapazes de gerir nossa própria vida. Claro que não são todas as pessoas que brigam com suas “medidas” e “pesos”; muitas já estão libertas do jugo dos modelos impostos pela mídia, e, nossa luta constante deve ser por libertar mais e mais reféns.
O julgamento da sociedade, portanto pode ser implacável, compostos por críticas ácidas, olhares desaprovadores e discriminação. Buscando um refúgio para sua dor, muitos grupos virtuais estão sendo formados para oferecer uma suposta acolhida para as jovens com Anorexia e Bulimia nervosas, podendo se tornar uma armadilha ao designar nomes amistosos e carinhosos, como “Ana” e “Mia”, romanceando e disfarçando os sintomas destes transtornos, sugerindo que não se tratam de doenças, mas “estilos de vida”, mascarando o caráter patológico e pernicioso que efetivamente representam. Importante salientar que grupos de apoio, virtuais ou presenciais, são importantes como espaços para o compartilhar e para a troca de experiências, mas que, acima de tudo, preservem o compromisso de oferecer recursos para que as pessoas superem suas dificuldades, evitando acomodá-las em suas frustrações ou dores.
Para melhor compreender a dinâmica de cada transtorno é preciso entender as suas peculiaridades. À seguir serão apresentadas as linhas gerais de cada um dos transtornos alimentares:
A anorexia nervosa caracteriza-se por uma privação auto-imposta de alimentos por pessoas que possuem um medo mórbido e injustificável de ganhar peso; na qual o ato de suportar a fome é interpretado como um domínio mental sobre o corpo, e esta rigidez mental, com todos os rituais de privação e esquivas alimentares, acabam por absorver todos os pensamentos da jovem, protegendo-a defensivamente de entrar em contato emocional com outras dificuldades ou emoções perturbadoras, típicas da existência humana.
Com o avanço da doença, pode-se entrar num estado de inapetência, ou seja, falta de apetite, tornando a privação alimentar mais traiçoeira e refratária, acompanhado de outro sintoma bastante preocupante e específico da Anorexia Nervosa que é o Transtorno Dismórfico Corporal ou Síndrome da Distorção da Imagem, no qual a imagem que a jovem vê refletida no espelho é o de uma figura obesa a ser vencida, com um corpo arredondado e volumoso, mesmo que todas as evidências indiquem o contrário, como o peso reduzido nas balanças, as roupas extremamente largas ou de tamanhos infantis.
Pais e familiares igualmente podem ficar confusos frente à retórica das jovens portadoras de anorexia que, muitas vezes, possuem amplo conhecimento teórico sobre alimentos; sobre seus componentes calóricos e vitamínicos, dando a impressão de que realmente trata-se de uma escolha, o que é um ledo engano, pois não passa de um mecanismo de negação de suas dificuldades e impossibilidade de comer. Fazer exercícios físicos excessivos igualmente podem “entrar nesta vibe” aparentemente saudável, mas que também tem um caráter obsessivo de controlar o peso.
Na anorexia nervosa há um aspecto similar ao que posteriormente observaremos nos processos bulímicos, e por isso, este tipo de anorexia pode receber o nome de Anorexia nervosa purgativa ou bulímica, na qual há o uso indiscriminado e abusivo de laxantes, enemas, diuréticos, inibidores de apetites, vômitos auto-induzidos, ou de qualquer outra estratégia que, acredita-se, seja capaz de eliminar as temidas calorias ingeridas. Acrescidos a esses métodos, atitudes de dissimulação ou truques também são usados para encobrir a privação e evitar o consumo de alimentos, tais como, esconder comidas debaixo da cama, em travesseiros, vomitar em plantas ou recorrer ao banheiro imediatamente após as refeições.
Na anorexia nervosa os comprometimentos físicos são mais evidentes, pois há uma aparência esquelética; o surgimento de “lanugos”, (pêlos adicionais que o corpo produz em uma tentativa de manter o corpo aquecido); interrupção do ciclo menstrual ou amenorréia; pele amarelada, envelhecida ou seca; quedas de cabelo e taxas de desnutrição elevadas. O corpo denuncia e clama por acolhida e ajuda.
Conforme dito anteriormente, os rituais purgativos podem estar presentes na anorexia nervosa, mas não a definem, pois estas estratégias são características da bulimia nervosa, que também apresenta sintomas característicos da Compulsão Alimentar Episódica (C.A.P.), ou seja, as pessoas com Bulimia nervosa costumam alternar períodos de privação alimentar, com comer compulsivo, acrescidos de medidas compensatórias com o uso de métodos purgativos. Por acreditarem que ao vomitar é possível expulgar todo o alimento ingerido, as pessoas com bulimia acabam não obtendo êxito na perda efetiva de peso, podendo apresentar-se aparentemente saudáveis, acima do peso ou ainda obesas, fator que pode postergar o pedido de ajuda, a adesão à tratamentos ou a intervenção de outras pessoas a seu favor.
O transtorno bulímico, portanto não se apresenta evidente na aparência, mas igualmente acarreta danos físicos pelo uso abusivo e lesivo dos rituais compulsivos e purgativos, pois o ato de vomitar constantemente após a ingestão dos alimentos, lesiona o trato digestivo, provocando desequilíbrios químicos e orgânicos. Os danos emocionais, por sua vez, são vivenciados no intenso sofrimento da vergonha e da culpa. A pessoa com bulimia nervosa, está consciente de que suas atitudes não são salutares, mas, como em toda compulsão, sentem-se impotentes para evitá-las.
Impotência também torna-se presente e evidente, na Compulsão Alimentar Periódica, na qual há ingestão excessiva de alimento em um curto espaço de tempo, acaba acarretando o ganho de peso mórbido e moldando um corpo obeso e fisicamente comprometido. O sofrimento emocional se apresenta principalmente na “ressaca moral” que surge após os episódios de ingestão abusiva de alimentos, na qual as pessoas se auto punem, autodepreciam, aprisionadas em uma relação destrutiva com os alimentos. As pessoas com estes transtornos encontram-se bastante vulneráveis às críticas e julgamentos sociais, geralmente sendo vítimas de bullying, recebendo avaliações pejorativas quanto ao seu comportamento, considerado preguiça, relaxo ou até “falta de vergonha na cara”.
Por estas atitudes sociais discriminativas, as dificuldades com a comida e com a auto-imagem, vem ganhando novas roupagens, mais aceitas pelo coletivo, ainda não consideradas como transtornos alimentares (pelo DSM-IV ou CID-10), mas podendo funcionar como “gatilhos” ou disfarces para as pessoas que já possuem predisposição hereditárias, físicas, familiares ou psicológicas para desenvolverem os transtornos.
Alguns perfis psicológicos foram delineados na tentativa de estabelecer parâmetros de análise no comportamento, crenças e sentimentos das pessoas predispostas à desenvolver os transtornos alimentares, numa tentativa de, a partir da compreensão dos fatores predisponentes, desenvolver estratégias de intervenção: observou-se que traços como perfeccionismo e autocontrole, baixa auto-estima, humor instável, vivência de traumas, dificuldade de lidar com frustrações e mudanças, exigências e expectativas elevadas de desempenho, formam possíveis elementos predisponentes.
Pessoas com as características acima descritas, igualmente se tornam passíveis de se envolverem com formas insalubres de gerenciar seu “apetite”, em função de uma auto imagem idealizada e inatingível. Neste contexto, estão surgindo termos como Ortorexia, ou a preocupação excessiva com alimentação saudável e perfeita, na qual as exigências pela pureza alimentar acaba acarretando uma excessiva restrição dos alimentos e, consequente isolamento social, ao levar o indivíduo com ortorexia à não tolerar conviver pessoas não adeptas à sua dieta, compelindo-os à imporem suas ideias aos demais, acreditando que sua obsessão é legítima, deflagrando uma série de comportamentos socialmente inadequados e hostis.
Na Vigorexia ou Complexo de Adônis, observa-se a busca de um corpo “sarado”, com músculos salientes e hipertrofiados, podendo chegar à uma deformidade física. No afã por um corpo “hercúleo”, um distúrbio de imagem pode se desencadeado, denominado de “dismorfia muscular” (DM), no qual a pessoa com vigorexia se vê sempre aquém do corpo musculoso idealizado, percebendo-se fraca e mirrada, induzindo-a, ainda mais, à uma busca obsessiva por músculos e força através do uso abusivo de exercícios físicos e consumo inadequado das ditas “bombas” (esteróides anabolizantes androgênicos), subvertendo o bom senso ao colocar em risco sua integridade física.
Faz-se necessário enfatizar que a caracterização de um comportamento como transtorno, depende da frequência, duração, comprometimento físico e grau de limitação e sofrimento que acarreta à vida do indivíduo envolvido. Para avaliações mais fiéis recomenda-se que, frente à suspeitas de transtornos alimentares, profissionais especializados sejam consultados, para que procedam as orientações necessárias e adaptadas à cada transtorno e a cada pessoa singular que apresente aquele transtorno. Recomenda-se a intervenção multidisciplinar, com equipes de psiquiatras, psicólogos, nutricionistas, bem como, dos demais profissionais da área de saúde que se fizerem necessários, pois os transtornos alimentares apresentam variadas causas e exigem o uso de diferentes estratégias conforme o risco à vida que podem acarretar.
Sejam quais forem os transtornos alimentares, evidenciados no corpo ou apenas aprisionados na alma, portanto, geram danos físicos, psicológicos e sociais, que necessitam de atenção, acolhida e tratamento. Ajudar estas pessoas à se protegerem de si mesmas, encaminhando-as para tratamento é um ato de amor e comprometimento com a vida.

Referência Bibliográfica
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM 5 – 5 ed. – Porto Alegre: Artmed, 2014
Silva, Ana Beatriz Barbosa. Mentes Insaciáveis – Anorexia, Bulimia e Compulsão Alimentar. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005
Woodman, M. A Coruja era filha do padeiro – Obesidade, Anorexia Nervosa e o Feminino Reprimido. São Paulo: Cultrix. 1980


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