O caminho da cura e a criança-ferida

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

O CAMINHO DA CURA e A CRIANÇA-FERIDA
O Arquétipo do Caminho

(Este texto foi transcrito a partir de alguns fragmentos da Monografia sobre Abuso sexual e maus tratos infantis, portanto foi escrito para pessoas que viveram o que chamamos dos “traumas” da infância que, quando não superados, resultam em “crianças-adulto-feridas”, ou seja, “crianças-feridas” que vivem escondidas na Alma destes adultos)

Algumas pessoas trazem na Alma, uma criança-ferida, machucada pela incompreensão dos Adultos-criança-feridas que com ela conviveram e tantas vezes, as educaram. Buscar esta criança e acolhê-la, explicando à ela que o adulto que a guarda cresceu e fazê-la acreditar acima de tudo, que é possível curar muitos destes “arranhões” ou ferimentos emocionais profundos…promovendo assim a libertação do adulto para uma vida inteira, saudável e construtiva.

O caminhar ao encontro das crianças-feridas é um viajar por terrenos íngremes, com percalços e muitas pedras pontiagudas capazes de ainda fazê-las sangrar. Este sofrimento dói muito e vai doer muito, até atingir um estado de compreensão do passado, que transforme esta dor em um sofrimento criativo e renovador, denominado sofrimento consciente.

Realizar a passagem de um sofrimento cego, envolto em brumas, para o sofrimento consciente, capaz de iluminar evoluções espirituais, é tarefa que necessita de um guia, o interno deve ser evocado sempre, o externo muitas vezes. Para adentrar mundos feridos é necessário conhecer racional e emocionalmente como são feridas as crianças. Saber quais as dores que mais sangram e matam o espírito. Para realizar este perscrutar da alma humana, tem-se que olhar atentamente para as dores que choram a humanidade em todas as suas épocas. Negligências, maus-tratos e abusos, físicos ou emocionais, rejeições, humilhações e tantos outras dores infringidas à infância ao longo da história da humanidade e da história de cada um de nós.

Para iniciar esta Jornada, primeiro é preciso enaltecer estas crianças-adulto-feridas por sua garra de viver, uma vez que somente a partir desta sobrevivência é que se pode adentrar no universo das possibilidades existenciais com toda gama de oportunidades de redenção e reconstrução. Este processo de reconquista emocional, passa do desativar dos mecanismos de defesa obsoletos, da vivificação do corpo sepultado e do despertar das emoções adormecidas.

Advertências, no entanto, precisam ser feitas quanto aos riscos desta viagem de retorno da Alma, pois as dores sucessivas ao serem infringidas na infância, sobrecarregam um ego débil, ainda sendo constelado, com dores profundas que o marcarão para toda vida. Dores que tecerão seu destino, feito as Moiras, deusas do Destino, desafiando todo seu potencial de construção, numa longa jornada de busca e conquistas, uma verdadeira travessia existencial.

No início da travessia, a luz que a criança-ferida traz na alma ainda é tênue e corre o risco de ser tragada pela escuridão. A mesma escuridão que anoiteceu a Alma dos adultos feridos que a machucaram. Para fortalecer a crença no potencial de recriação dos caminhos em busca da cura, caberia compartilhar neste momento, de início da travessia, do poema “Eros e Psiquê”, de Fernando Pessoa, poema que traz a suave esperança do êxito no final da aventura de ir ao encontro de si mesmo.

[Conta a lenda que dormia
Uma princesa encantada
A quem só despertaria…
Um infante que viria
De além do muro da estrada

Ele tinha que tentado
Vencer o bem e o mal
E antes que já libertado
Deixasse o caminho errado
Pelo que a princesa vem

A princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera
Sonha em morte a sua vida
E orna-lhe a fronte esquecida
Verde
Uma grinalda de hera

Longe
Infante esforçado
Sem saber que intuito tem
Rompe o caminho fadado
Ele é dela ignorado
Ela, para ele, ninguém

Mas cada um cumpre seu destino
Ela, dormindo encantada
Ele, buscando-a sem tino
pelo processo divino que faz existir
a estrada

E se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada afora é falso.
Ele vem seguro
E vencendo estrada e muro,
Chega onde, em sonhos
ela mora.

Ainda tonto do que houvera
A cabeça em maresia
Ergue a mão e encontra a hera e vê
Que ele mesmo era
A princesa que dormia.]

Descrevendo o “processo divino que faz existir a estrada”, este poema fortalece a crença de que cada ser humano tem à cumprir uma lenda pessoal, realizando seu destino, independentemente do quão obscura possa se mostrar a estrada.

Certa vez, a Psicoterapeuta Ivani Alves de Lima Carollo, durante um curso de Formação de Psicoterapeutas Corporais, ano 1990, alertou que “não importa o quão triste ou sofrida seja a história do cliente, sempre existirá uma possibilidade de (re)construção”. Esta ressalva na crença de que o cliente, feito o infante é capaz de vencer estrada e muro, é fundamental para a Alma dos psicoterapeutas que recebem para seus cuidados profissionais e humanos, pessoas emocionalmente magoadas, cujas dores podem mobilizá-los técnica e emocionalmente.

A crença de que há uma grinalda de hera guardada nas profundezas da Alma, um “self” capaz de florescer, faz com que se rompa qualquer caminho sombriamente fadado, e ainda que por uma predestinação desconhecida, se deixe o caminho errado, do ego errante, para encontrar a própria Vida antes adormecida.

Munidos desta crença, é possível dar continuidade a este caminhar, que passará por muitas e diferentes estações de ser nesta travessia de resgate e de cura das muitas crianças-feridas com as quais as famílias feridas se compõem.