Codependência: Quando o cuidado machuca!

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

O TERMO “CODEPENDÊNCIA”

A Codependência é um tema relativamente recente e de difícil definição e, por esta razão, torna-se mais produtivo tratar de suas características e consequências. O funcionamento das pessoas a partir deste modelo de dependência emocional, estabelece relacionamentos desajustados e viciosos, geradores de padrões rígidos de comportamentos destrutivos.

Como será visto nas próximas discussões, o estudo da Codependência surgiu da observação do comportamento de pessoas envolvidas em relacionamentos com alcóolicos, mas o comportamento codependente, sistematizado a partir desta observação, pode ser verificado em outros tipos de relacionamentos, igualmente considerados tóxicos e destrutivos, mas nos quais não há especificamente a presença de pessoas compulsivamente dependentes, seja por álcool, jogo patológico, compras, comida ou outras viciações ou adicções.

Caberia enfatizar, que é comum que as pessoas em geral se identifiquem com alguns comportamentos codependentes, pois eles não são tão extraordinários assim, mas como tudo que define qualquer disfuncionalidade psicológica, o que caracteriza a codependência está no grau de comprometimento e limitaçõesque geram na vida dos indivíduos envolvidos.

À guisa de uma breve síntese histórica, caberia retomar a ideia de que o termo codependência surgiu na década de 70, a partir da análise do comportamento das pessoas que “cuidavam” de familiares alcoólicos, acompanhando-os aos grupos de autoajuda, criados especificamente para atenderem as necessidades de recuperação desta população. Observou-se, no entanto, que as compulsões, sejam por quaisquer substâncias ou circunstâncias, afetam não apenas o indivíduo adicto, mas todo o núcleo familiar, e em decorrência desta rede de prejuízos, as compulsões foram caracterizadas como “doenças familiares”. Como a compulsão trata da inabilidade de algumas pessoas de lidarem com seus impulsos excessivos, sucumbindo ao descontrole de suas ações adictas, é natural que gerem desordem e instabilidade no meio familiar.

            Neste contexto, Melody Beattie (1, p. 58), assim define uma pessoa codependente: “é uma pessoa que tem deixado o comportamento de outra pessoa afetá-la, e é obcecada em controlar o comportamento dessa outra pessoa.”

            Relata a autora que cunhou esta definição a partir da percepção de seu próprio sofrimento, que a levou a observar e compreender o sofrimento de outras pessoas que compartilhavam da mesma dor que a oprimia. Percebeu-se codependente e na busca de sua cura, ofereceu auxílio para muitos codependentes, em uma época na qual este nome ainda não era reconhecido.

Faz-se necessário enfatizar novamente, que o comportamento codependente não está circunscrito exclusivamente à convivência com pessoas com vícios ou compulsões, mas à quaisquer pessoas emocionalmente instáveis e frágeis, que se apresentem incapazes de gerenciar construtivamente a própria vida. Em se tratando de codependência e pelas peculiaridades do assunto, algumas ideias tendem a ser (re)apresentadas várias vezes, sempre no intuito de diferenciar conceitos e evidenciar diferenças, sejam emocionais ou comportamentais.

A GÊNESE DA CODEPENDÊNCIA

A gênese da codependência, se dá em geral, a partir da convivência com pessoas “desajustadas”, instáveis ou fora de controle e no fato da fragilidade psicológica destas pessoas induzirem  seus familiares a acreditarem que são responsáveis pelo seu comportamento compulsivo , ou seja, são filhos que acreditam que se forem perfeitos farão o pai parar de jogar; esposas que acreditam que se forem mais dedicadas cessarão com as crises violentas do marido ao voltar do bar e tantos outros comportamentos idealizados que visam persuadir uma pessoa conflitiva à mudar sua conduta. Pessoas que passam a nortear suas vidas a partir das crises e recaídas da pessoa que julgam serem responsáveis por salvar.

O aprendizado do funcionamento codependente tem seu início geralmente na infância, podendo ser considerado como uma estratégia de sobrevivência, conforme explica Melody Beattie, enquanto pesquisadora e codependente (1, p. 64):

“Começamos a nos comportar dessa maneira por necessidade de proteger a nós mesmos e para satisfazer às nossas necessidades. Fizemos, sentimos e pensamos essas coisas para sobreviver – emocional, mental e às vezes fisicamente. Tentamos compreender e enfrentar nossos mundos complexos da melhor forma. Conviver com pessoas normais e saudáveis nem sempre é fácil. Conviver com as doentes, perturbadas ou problemáticas é particularmente difícil (…)Muitos de nós tentamos lidar com situações terrivelmente ultrajantes, e esses esforços são admiráveis e heroicos. Fizemos o melhor que pudemos. 

ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIAS E REGRAS DESUMANAS

Infelizmente muitas destas estratégias de sobrevivência, estabelecidas comumente na infância, chamadas também de defesas psíquicas, acabam por transformar-se em mecanismos obsoletos e autodestrutivos. Acabam cristalizando comportamentos defensivos, reativos e infantis, perpetuando-os na vida adulta, quando estes já não se fazem mais necessários. O codependente não se dá conta que cresceu e que não é mais uma criança vulnerável.

Robert Subby (2, p. 31), estudioso especialista no assunto, elaborou um conjunto de regras que acredita terem sido declaradas ou veladamente impostas as pessoas codependentes na infância ou em algum momento de suas vidas, denominando-as de “regras opressivas”. Ideias que induzem as pessoas, em função de uma exposição prolongada, à não acreditarem em si mesmas e em seus direitos:

“- Não sinta ou fale suas emoções;

– Não pense;

– Não identifique, discuta ou resolva problemas;

– Não seja quem você é – seja bom, correto, forte e perfeito;

– Não seja egoísta – tome conta dos outros e negligencie a si mesmo;

– Não se divirta, não seja alegre ou goze a vida;

– Não confie em outras pessoas ou em si mesmo;

– Não seja vulnerável;

– Não seja direto;

– Não se aproxime das pessoas;

– Não cresça, não mude e de forma alguma abale a estrutura familiar.”

Dentro da psicologia é comum observar que alguns pactos familiares não são explícitos, mas todos os familiares o honram, sem que palavras tenham sido ditas para sacramentá-los. Algo como se “as paredes sussurrassem”, ordens semelhantes as regras acima descritas.

Com tantas proibições do sentir e do expressar-se, parece inevitável que os codependentes não aprendam a cuidar de si mesmos e de suas vidas, pois estão muito ocupados cuidando dos comportamentos de seu familiar com problemas. E também torna-se evidente que estas pessoas nunca consigam alcançar o ideal de dedicação e desempenho que tais regras preconizam. Logo, mensagens como: “Ninguém gosta de mim”; “Não mereço coisas boas” ou “Nunca serei bem sucedido”, são consequências de tantas exigências inumanas.

CARACTERÍSTICAS DA PESSOA CODEPEDENTE

Após uma tentativa de possíveis definições, caberia no momento, passar a elucidar as características dos codependentes e para tanto, igualmente serão usadas as formulações de Melody Beattie (1, p.17), cuja vivência de e com a codependência, a tornou capaz de dar sentido à algumas características que, de outra forma, poderiam soar como perversas ou mal intencionadas, mas que são resultantes dos equívocos emocionais anteriormente descritos. A autora assim as descreve:

“Vi pessoas hostis: elas tinham sentido tanta dor que a hostilidade era a sua única defesa contra serem esmagadas de novo. Eram raivosas porque qualquer um que tivesse tolerado o que tiveram de tolerar ficaria com tanta raiva assim.

Eram controladoras porque tudo à sua volta e dentro delas estava fora de controle. A represa de sua vida e daqueles à sua volta estava sempre ameaçando romper-se e a despejar consequências prejudiciais em todos. E ninguém além delas parecia notar ou ligar para isso.

Vi pessoas que manipulavam, porque a manipulação parecia ser o único caminho de conseguirem fazer algo. Trabalhei com pessoas dissimuladas, porque o ambiente em que viviam parecia incapaz de tolerar a honestidade.

Trabalhei com pessoas que se sentiram a ponto de enlouquecer, porque haviam acreditado em tantas mentiras que já não sabiam distinguir a realidade.

Vi pessoas tão absorvidas pelos problemas de outros que não tinham tempo de identificar ou resolver seus próprios problemas. Eram pessoas que se dedicavam tão profundamente – e muitas vezes até destrutivamente – a outras, que se esqueciam de cuidar de si mesmas. Os codependentes sentiam-se responsáveis por tantas coisas porque as pessoas à sua volta eram responsáveis por muito poucas; elas estavam apenas assumindo a carga.

Vi pessoas confusas e sofridas que precisavam de carinho, compreensão e informação. Vi vítimas de alcoolismo que não bebiam, mas mesmo assim eram vítimas do álcool. Vi vítimas lutando desesperadamente para ter algum tipo de poder sobre seus dominadores. Elas aprenderam comigo e eu aprendi com elas.”

Novamente, faz-se oportuno enaltecer a sensibilidade da autora ao descrever os comportamentos conflituosos da codependência, evitando julgar as pessoas codependentes como vilãs, uma vez que características como controladores, hostis, manipuladores e dissimulados já podem trazer em si um cunho pejorativo e, no que tange às relações humanas, toda análise deve ser relativa e circunstancial.

O CÍRCULO VICIOSO: SALVADOR – PERSEGUIDOR – VÍTIMA

As relações viciosas disfuncionais ou tóxicas, presentes na codependência, alicerçadas nos papéis de Salvador, Perseguidor e Vítima, são chamadas de “Triângulo de Dramas de Karpman”, elaborado Stephen B. Karpman, para descrever a interação destes papéis e consiste em uma ferramenta para melhor compreender o envolvimento codependente nos relacionamentos afetivos e avaliar porque as suas boas intenções não surtem os resultados positivos que esperavam.

Karpman elaborou a figura de um triângulo invertido, no qual o Perseguidor costuma ficar no vértice à esquerda, o Salvador à direita e a Vítima no vértice inferior do triângulo.  Neste triângulo invertido, as setas indicam sentidos opostos, demonstrando que os papéis podem ser trocados. Para compreender a interrelação destes papéis, no qual um pode desencadear o outro, faz-se necessário compreender o funcionamento individual de cada um dos envolvidos.

SALVADOR

Sobre o papel de salvador, o terapeuta Scott Egleston (1, p. 107), explica o que exatamente significa o termo salvar: “salvamos sempre que assumimos a responsabilidade por outro ser humano – pelos seus pensamentos, emoções, decisões, comportamento, crescimento, bem-estar, problemas, ou destino.” E para detectar um Salvamento, pode-se usar alguns indicadores, destacando as sensações que apresentam o Salvador após “tomar conta” de qualquer pessoa que eleja salvar:

Frente a uma pessoa com problema, o Salvador sente-se confrangido à fazer algo, como se tal responsabilidade fosse de sua competência. Sente-se responsável pela pessoa e por suas necessidades, mesmo que esta não tenha solicitado ajuda. Uma ansiedade difusa, um medo e uma necessidade de algo fazer, trazem um desconforto e um dilema.

Caso não siga seu impulso de apropriar-se do problema do outro, uma culpa dele se apodera, induzindo-o a compulsivamente reagir a pessoa ou circunstância problemática. Um certo sentimento de santidade envolve o salvador, fazendo-o sentir-se mais apto e qualificado para a resolução das dificuldades do indivíduo a ser alvo, o qual considera inapto e incapaz.

Paradoxalmente, este anseio de salvar, vem acompanhado de uma relutância velada, que o faz sentir-se aprisionado à necessidade de salvar, gerando ressentimentos, hostilidade, com uma sensação de obrigação que retira toda a possibilidade de uma ajuda espontânea e construtiva.

E acima de tudo, num salvamento é necessária a ilusão ou certeza de que a pessoa a ser salva é completamente incapaz de fazer o que o salvador está fazendo por ela. Necessário novamente se torna enfatizar que este ato de ajuda “salvadora” é diferente do ato de amor, bondade, compaixão e ajuda genuínos, pois além de estar ancorado numa necessidade do codependente, tende a fragilizar e tornar a pessoa a ser salva como impotente, transformando-a em vítima.

VÍTIMA

Na dinâmica do triângulo de dramas, a vítima está pendurada na ponta inferior do triângulo, ávida para ser salva. Comporta-se como incapaz, impotente e necessitada e neste contexto, nem vítima, nem salvador acreditam que ela realmente seja capaz de responsabilizar-se por si mesma. Após o salvamento desta vítima pseudo indefesa, no entanto, é comum surgir por parte do salvador um ressentimento por ter sido “obrigado” a salvá-la e então, o perseguidor começa a se manifestar.

PERSEGUIDOR

Nesta etapa, nova contradição emerge, pois como o salvador necessita ter controle sobre a vítima, caso esta não seja suficientemente submissa e cordata, este passa a sentir-se contrariado e ressentido e automaticamente o papel do perseguidor é desencadeado, em outras palavras, quando o salvador se dá conta do quão generoso e magnânimo se portou para ajudar a vítima, e o quanto ela não se comporta da forma devotadamente esperada, surge o perseguidor.  Quando o perseguidor emerge, percebe-se que a relação não está funcionando de forma satisfatória, pois neste papel, a pessoa passa a externar certa hostilidade, mau humor, irritação e ressentimento em relação a vítima, ainda que busque mascarar para si mesmo e para a vítima, estes sentimentos destrutivos.

A vítima, por sua vez, percebe a hostilidade do perseguidor, sente-se ressentida, passando a insubordinar-se e a confrontar aquele que a considerou inapta. Neste momento, se dá a inversão de papéis, a vítima passa a ser perseguidora e o perseguidor indignado passa a ser vítima, do que considera uma injustiça. O antigo salvador, agora vítima, sente-se usado, não reconhecido, imerso em sentimentos de desespero, mágoa, tristeza, vergonha e autocompaixão.

Em algum momento de sua vida, os codependentes estiveram verdadeiramente na situação de vitimização de um familiar desajustado, e esta manobra inconsciente de salvar, perseguir e tornar-se vítima, acaba por perpetuar a sensação de vazio, abuso ou abandono, vivido na infância ou em alguma época anterior de sua vida, quando efetivamente estava em uma situação vulnerável.

As queixas comuns dos salvadores presos neste triângulo de dramas portanto, são as de se sentirem explorados e negligenciados pela insensibilidade dos demais para com suas necessidades, ainda que apresentem muita dificuldade em receber atenção ou ajuda, pois para eles, dar e tentar satisfazer os outros é mais seguro do que permitir-se receber auxílio ou acolhimento dos demais. Difíceis também, são a sensação de rejeição e menos valia que acompanham o codependente salvador quando sua intervenção não é aceita, quando alguém se recusa a ser “ajudado”.  Sobre estes sentimentos contraditórios, alerta Melody Beattie (1, p. 114):

Contudo, lá no fundo da maioria dos salvadores há um demônio: a baixa auto-estima. Salvamos porque não nos sentimos bem com nós mesmos. Tomar conta nos proporciona uma sensação temporária de bem-estar, de valor próprio e de poder, embora seja um sentimento transitório e artificial. Assim como um gole ajuda o alcóolico a sentir-se momentaneamente melhor, um salvamento nos distrai momentaneamente da dor de ser quem somos. Não nos sentimos merecedores de amor, então nos conformamos em ser necessitados pelos outros. Não nos sentimos bem sobre nós mesmos, então nos sentimos compelidos a fazer algo para ‘provar’ que somos bons. Em síntese, baixaestima e o exílio de si mesmo, aprisionam a pessoa codependente neste triângulo de dramas.

CONTRADIÇÕES EMOCIONAIS E VULNERABILIDADE 

A partir da percepção das contradições emocionais dos codependentes, pode-se compreender seu estado de vulnerabilidade. Nas palavras da autora (1, p. 68): “A co-dependência é muitas coisas. É a dependência das pessoas – em seus humores, comportamentos, doenças ou bem-estar, e seu amor. É paradoxal. Os codependentes parecem ser pessoas das quais se depende, mas são dependentes. Parecem fortes, mas se sentem desamparados. Parecem controladores, mas na realidade são controlados, às vezes por uma doença, como o alcoolismo.”

As contradições emocionais até o momento descritas, serão a bússola que ditará a recuperação do estado de sofrimento do codependente. A tomada de consciência e aceitação do caráter dependente e, de certa forma, pouco construtivo de seus relacionamentos, aliado ao acolhimento de suas necessidades emocionais, serão as molas propulsoras da transformação e da superação da codependência. Processos de crescimento pautados na máxima de que “cada pessoa é responsável por si mesma.”

LIBERTAR-SE!

Uma reflexão de Artur da Távola (3, p. 58), pode resumir esta busca de si mesmo: “O encontro e a ocupação do próprio espaço implica a descoberta (tranquila ou dolorosa) do que é realmente nosso e do que é dos outros e ficou preso dentro de nós. Aí está uma das descobertas fundamentais do ser humano.

Descobrir e ocupar o próprio espaço é encontrar a verdade existencial: do bom e no ruim que tenhamos. É ocupar com material próprio tudo o que somos e fazemos. É encontrar e seguir o próprio destino. Não o Destino, no sentido fatalista. Mas o destino no sentido da destinação profunda do que somos, fazemos e queremos.”

REFERÊNCIA BIBLOGRÁFICA

1 – Beattie, Melody. CODEPENDÊNCIA NUNCA MAIS: pare de controlar os outros e cuide de você mesmo.. 16ª ed. – Rio de Janeiro; BestSeller, 2013

2 – Beattie, Melody. PARA ALÉM DA CODEPENDÊNCIA: deixe de ser codependente de um vez por todas – 4ª ed. – Rio de Janeiro; BestSeller. 2012

3 – Távola, Artur da. ALGUÉM QUE JÁ NÃO FUI. 5ª ed. Rio de Janeiro. PLG. 1979

 

 


1 comentário

Israel night club · Abril 27, 2022 às 7:01 am

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