Rejeição e o medo do prazer de viver

Por Polyana Luiza Morilha Tozati em

REJEIÇÃO e o MEDO DO PRAZER DE VIVER
“AUTO-SABOTAGEM’

Na prática psicoterapêutica observa-se que determinados clientes demonstram acentuada dificuldade de engajar-se à vida, tanto engajando-se num âmbito expressivamente danoso, quanto num conjunto de pequenas “auto-sabotagens” cotidianas, que constantemente corroboram uma antiga e subjacente crença de que toda tentativa de construção existencial é efêmera e frustradora.

No decorrer do processo terapêutico, no entanto, com o paulatino desnudamento das emoções do cliente, defronta-se com um subjacente e implacável sentimento de rejeição a si mesmo. Rejeição que por sua vez, instaura tantas outras, enclausurando o indivíduo numa cadeia de abandonos, que o distanciam de si, do outro e do contato com a própria vida.

A estreita relação existente entre comportamento auto-destrutivo e rejeição é discutida por diversas teorias psicológicas, as quais situam sua gênese na tenra infância, no relacionamento da criança com seus pais, sendo crivados modelos atípicos de relacionamentos afetivos que se desenvolvem até a vida adulta, estabelecendo fracassos, isolamentos e cadeias de destrutividades na relação deste indivíduo com o mundo. Enfatizam, ainda, algumas abordagens psicológicas que um retorno à vida construtiva torna-se possível, desde que, no entanto, os “nós” que atrelam o indivíduo a seu passado sejam desfeitos.

Sendo a rejeição neste texto considerada como um repudiar, negar e opor-se a si próprio e à vida, a tarefa que ora se apresenta, é a de investigar sua gênese. Para tanto, a discussão da teoria de Melanie Klein (1, pg 07), neste tocante faz-se necessária, uma vez que considera a rejeição do indivíduo por si próprio, como reflexo de uma rejeição inicial de seus pais em relação à eles.

Visando melhor compreender o efeito devastador desta rejeição para a criança, é importante recordar do bebê em seu estado de completa e absoluta dependência à mãe, vista e sentida como provedora de sua vida. Esta relação vai imprimindo no bebê modelos de relação com o mundo, a partir das satisfações ou insatisfações que proporciona, bem como, do nível de segurança físico-emocional que oferece a ele, para que a estruturação de sua personalidade se processe de maneira saudável ou evidenciando comprometimentos emocionais.

A relação mãe e bebê desenvolve-se, superando o momento da simbiose, passando a comportar a inclusão do pai e/ou outros indivíduos que compõem o sistema familiar. Normalmente este processo, repleto de quebras e inclusões, se dá de maneira gradativa, oferecendo suporte para que o bebê aceite este nova ordem, agora caracterizada como social.

O processo acima descrito pode, no entanto, ocorrer de maneira aguda, repentina e patologizante provocando um afastamento abrupto, sentido como rejeição, passíveis de gerar uma profunda e extensa depreciação por parte da criança de todas as pessoas e situações muito amadas e desejadas. Assim sendo, em certas pessoas pode desenvolver-se uma perda da fé e da confiança na bondade do mundo e de si mesmos, que em parte torna-se responsável por uma tendência à suspeitar e a evitar aquilo que consideram bom ou amado, passando a desenvolver atitudes
destrutivas, gerados por desapontamentos, frustrações, vingança ou medo.

Dentro ainda de uma perspectiva da psicologia genética, faz-se profícuo ampliar o manancial de análise, enriquecendo-o com a ótica de Alexander Lowen (2, pg 100 à 102)que esclarece que, a falta de contato corporal é experenciada pela criança como abandono. Se as exigências da criança, no sentido da obtenção deste contato não forem satisfeitas, com uma resposta calorosa, ela crescerá com a sensação de que no mundo não há pessoas em quem confiar ou que se importem com ela, podendo passar então, à igualmente pouco importar-se consigo mesma. Poderá até mesmo vir a achar que a insistência em expressar suas necessidades de contato corporal podem evocar uma reação hostil por parte dos pais, aprendendo desta forma, à também portar-se de maneira hostil frente ao mundo. No intuito de evitar a dor de anseios não atendidos, aprenderá à suprimir o seu desejo de intimidade física, concluindo que a sobrevivência exige a supressão do sentimento e do desejo. Sentir anseios implica em sentir o abandono, o que para a criança, equivale à morte.

As duas teorias suscintamente apresentadas convergem para a ideia de que um abandono inicial imposto à criança, suplanta e justifica todo e qualquer abandono do indivíduo na vida adulta, incrementado, muitas vezes, com a necessidade de destruir o que de bom lhe é oferecido, num incansável e inesgotável descrédito e vingança pelo amor anteriormente negado.

Muitos indivíduos optam por um isolamento auto-imposto, que se lhes apresenta menos assustador do que a possibilidade de novos abandonos ou rejeições, vivenciados como possibilidades de morte. Outros optam por apenas sobreviver, estando, no entanto, muito próximos da morte, externando resignação à posição do “intruso”, do destituído de direitos, do rejeitado. E, ainda, existem àqueles que se “lançam à vida”, numa atitude hostil, desafiadora e provocativa, esperando a inexorável condenação e punição, as quais ele próprio já se condenou, utilizando-se da sociedade apenas como cumpridora da sentença por ele mesmo imputada.

Após estabelecido tão contundente diagnóstico, quais os caminhos se pode propor a estes indivíduos, para que retornem à Vida que tanto temem? Como auxiliá-los a não se identificarem mais com as emoções que os rejeitaram na infância, e com as quais compactuam?

Frente a situação tão delicada, é imprescindível que o indivíduo aceite o desafio de confrontar a própria morte, no sentido de transformação emocional, assegurando-se no entanto, que apesar da dor sentida, existe a possibilidade da sobrevivência, conforme discorre Lowen (2, pg 104):

“O desepero (…) não pode ser superado enquanto o indivíduo não tiver assegurada a sua habilidade de sobreviver. Isto significa que ele precisa mergulhar nas profundezas do seu desespero e aceitar a sua sorte. (…)após terem descoberto que são capazes de sobreviver nas situações mais desesperadoras possíveis, eles ousam então confrontar a realidade; eles ousam aceitar o seu desejo de intimidade física. Ao perceberem que não tem mais nada a perder, perdem o medo.”

Somente enfrentando a rejeição sentida, impressa na inconsciência da infância, é que se pode transformá-la, transformando o indivíduo em um ser capaz de ver a si próprio, destituído das marcas que lhe impuseram o medo e os abandonos.

Readquirir a confiança na vida, significa restituir a confiança em si próprio, tarefa árdua àqueles indivíduos fadados a defenderem-se de seus próprios sentimentos. Como o comportamento auto-destrutivo manifesta-se cotidianamente, desde pequenas “auto-sabotagens” até danos mais expressivos, pode-se começar à minimizar o efeito aterrador da destruição nestas pequenas lidas cotidianas. Tal processo, realizável no âmbito da proposta terapêutica, pode encorajar o indivíduo à construir, sem ameaça-lo com transformações abruptas, uma vez que foi a abrupta descoberta da rejeição que o incapacitou para a vida.

Trabalhar para a construção da vida, significa acreditar que ela tem a oferecer muito mais do que o limitado referencial de que dispõe o ser humano ao vislumbrá-la quando enredado em seu próprio afã de negá-las. O paradoxo do medo da morte, matando a própria vida, somente poderá ser transposto com a aceitação plena do desafio de viver, com a aceitação dos riscos dos encontros e abandonos com os quais a vida se constrói.

BIBLIOGRAFIA

1 KLEIN, M. Amor, Ódio e Reparação. Rio de Janeiro, imago, 1970
2 LOWEN, A. O Corpo Traído. São Paulo, Summus. 1967